quinta-feira, 22 de julho de 2010

Travesti na terceira margem do rio

Por Arnaldo Jabor


Não vou falar de guerra - danem-se os religiosos que destroem o mundo em nome de Alá e Jesus. Uma noite dessas, fui a Lapa, como meus amigos Miguel Faria Jr. e Ruy Solberg. Fomos ver a obra de finalização do Estrela da Lapa, o hiper-espaco, o cabaré pós-moderno, o já famoso nightclub mutante que Ruy vai inaugurar na mitológica esquina onde Noel Rosa flanava, onde porristas transcendentais faziam a música dos anos 30/40 - a esquina de Lavradio com Mem de Sá. A Lapa é um vivo museu de velhas casas deslumbrantes, botequins, bordéis, casas de pasto, fachadas meio barrocas meio neoclássicas que tinham de ser preservadas, em vez da sórdida filial oportunista do Guggenheim submarino que vai matar os baiacus da Praça Mauá.
Em frente da futura Estrela da Lapa, há um ponto de travestis iluminados.

Quando passamos, um deles gritou meu nome, veio correndo e me abraçou, dizendo que era meu fã, porque eu tinha escrito um artigo sobre as 'travecas', que ele, Luana Muniz, líder comunitário havia lido numa assembléia de sexo-mutantes com grande repercussão. Fiquei emocionado com os abraços por um texto que escrevi dez anos atrás, porque realmente acho fascinante a vida dos travestis. Por isso, volto a escrever sobre eles, reproduzindo também trechos do primeiro artigo.

Acho os travestis figuras shakespearianas, de grande dramaticidade, centauros urbanos, corajosos, encarnando duas vidas num corpo só. Os travestis almejam uma beleza superior, uma poesia qualquer insuspeitada, mesmo que movidos pela necessidade da grana do 'michê'. Não confundir o travesti com a drag-queen; a drag-queen é satírica, caricatura de uma impossibilidade; o travesti é idealista. O travesti acredita na arte; é utópico e romântico. O travesti tem orgulho de ser quem é; ele não é uma decaída - ele tenta ser uma afirmação de identidade. Na realidade, o travesti é uma espécie de ideal das mulheres, principalmente das pós-peruas, das turbinadas e siliconadas, pois elas querem ser homens também, homens macios, elas aspiram à coragem e liberdade do travesti, sem pagar o preço das ruas, pois o travesti sempre encerra um perigo qualquer.

Eles não têm a mansidão aparente das damas da noite. O travesti é um risco maior que a aids. Eles têm algo de homem-bomba - carregam um segredo que pode ter matar ou te mudar para sempre. O travesti não enfrenta a moral vigente; eles enfrentam a biologia. A garota de programa é conservadora, serve ao sistema sexual vigente. O travesti é revolucionário, quer mudar o mundo. O veado ama o homem; o travesti ama a mulher mas ele não quer ser mulher, ele quer muito mais, ele não se contenta com pouco, ele é barroco, maneirista (não existem travestis clássicos). Há algo de clone no travesti, algo de robô, pois eles nascem de dentro de si mesmos, eles são da ordem da invenção, da poesia. O travesti não quer ter uma identidade; ele almeja uma ambigüidade sempre deslizante, sempre cambiante, se parindo numa estirpe futura de neo-loucos. O que oferece o travesti ao homem que o procura?

Oferece-lhe a chance de ser a mulher de uma mulher, oferece-lhe um pênis dissimulado. O travesti que se opera perde sua maior riqueza: a ambigüidade.
Nada mais triste que o travesti castrado; não é mais homem nem mulher. Vira nada. Passa a existir só em sua fantasia. O travesti não é uma coisa simples e doce; há um lado 'criminal' no travesti. Ele não é veado. Ele tem coragem de ser duplo, coragem do ridículo, do terror no centro da madrugada. Tudo isso ele suporta pela grana, claro, mas também pela suprema glória no espaço místico da esquina do Hotel Hilton ou da Avenida Atlântica. A prostituta ajuda no tédio da vida conjugal; o travesti ameaça as famílias. Ele é útil politicamente, porque cria a duplicidade no mundo dos confiantes executivos, porque cria uma rachadura no mundo real de hoje. O travesti não é uma pobre mulher por quem você pode se apaixonar e viver feliz para sempre. O travesti é inquietante, porque você pode virar mulher dele. O homem que se casa com a prostituta é considerado um 'benfeitor' que humilha um pouco a mulher amada que salvou. O travesti nunca será grato a você; você é que terá de lhe agradecer. O travesti não dá uma boa esposa; você é que poderá virar uma boa esposa para ele: "Querida, já lavei sua minissaia de oncinha..." Você não tira um travesti da 'vida'; ele é que pode te tirar da tua. Ele tem tudo; ele é auto-suficiente. Ele é um casal; se você entrar, você é o terceiro e pode ser excluído. O travesti sabe tudo que um homem quer, pois, como seu desejo é masculino, ele conhece a mulher ideal. Só o homem pode ser a mulher ideal.

O travesti está numa missão impossível e sabe disso; ele sabe que ainda é um dos poucos redutos do sonho no mundo. Ele não é da área moral, ele é da área artística. O travesti não tem par. Quem é o par do travesti? A prostitutinha tem lá o seu amante, seu cafetão. E o travesti? Ele é só. O travesti nu em Copacabana desafia todos os pudores. Quem está nu ali na esquina, o homem ou a mulher nele? Ninguém está nu, pois ele viaja na identidade e se disfarça o tempo todo; por isso, pode ficar nu na rua - ele não é ninguém, ele não aspira a um 'eu' fechado, ele é um 'eu' contemporâneo, ele é descentrado, movente, ele é o 'sujeito' moderno. O travesti tem algo de caubói - e desperta a mesma admiração que um John Wayne de biquíni 'fio dental'. Porque você está na paz; ele está na guerra. Você passa no seu Audi e vê na terceira margem do rio, uma Marlene Dietrich de botas no meio dos faróis e lá se vai o pai-de-família perdido de loucura. Todos somos ingênuos e caretas vistos daquele ângulo, mas todos somos travestis: 'maus' vestidos de 'bons', idiotas vestidos de sábios, egoístas de generosos, bichas de machões. O travesti nos fascina porque assume a verdade de sua mentira.

2 comentários:

Sapo disse...

Querido Arnaldo Jabor, voce realmente não sabe o que é um travesti, pessoas egocentricas que só pensam em si próprios.
Vá até a família destas pessoas e veja o sogrimento causado...

Leo disse...

Sr Sapo, egocentrismo é uma característica inerente ao ser humano, e algo muito genérico em uma análise generalizante como a sua. O possível sofrimento causado por um travesti em sua familia envolve várias coisas que podem ser aplicadas a vários tipos de filhos. O Jabor pode não conhecer bem o que é um travesti, mas ao menos o texto dele parece trazer mais esclarecimento que o comentário feito por vc, não?