sexta-feira, 27 de abril de 2012

Introduzindo Joan Brossa

Joan Brossa: pequeno panorama sobre sua vida e obra

por Marcelo Terça-Nada!


"Há anos a obra de João Brossa cruza, sem passaporte, a fronteira entre as modalidades artísticas" (João Bandeira)


Joan Brossa nasceu em 1919 em Barcelona, Espanha. Figura cercada de histórias curiosas - talvez devido a grande aproximação entre sua vida e obra -, Brossa esteve em permanente movimento. Toda sua vida pode ser vista como um processo de experimentação constante que resultou numa impressionante obra plástica e poética: numerosos trabalhos de poesia em verso, poesia visual, poesia objeto, instalações, poemas transitáveis (esculturas-poema em locais públicos), poemas cênicos (textos para teatro) e roteiros cinematográficos. Sua obra é tão engajada quanto cheia de humor. Tão irônica quanto lírica. Tão ligada ao cotidiano e as suas raízes catalãs quanto inovadora e subversiva. Tão diversificada quanto rica.

Vim a conhecer a obra de Joan Brossa durante uma palestra realizada pelo professor Marcelo Drummond no NECI - Núcleo de Estudos da Cultura do Impresso, da Escola de Belas Artes da UFMG no princípio de 2003. Foi ele também quem me trouxe o depoimento de que Brossa fazia truques de mágica e ilusionismo em pleno metrô de Barcelona (o que fazia também nas ruas da cidade e nos saraus que promovia). "A gente estava andando de metrô e de repente via o Brossa cuspindo bolas de borracha, ou fazendo malabarismo com cartolas e chapéus...".

Waly Salomão conta, em um depoimento publicado na Revista Cult, que Brossa era um poeta que "andava a pé pela cidade de lado a lado, percorrendo distâncias inacreditáveis, sem um níquel no bolso, um sujeito sem dinheiro, que comia pouco, um pedaço de pão recheado apenas com tomate ou cebola, e de vez em quando uma sopa que algum amigo lhe pagava".

Sabe-se que Brossa integrou o movimento de resistência à ditadura e a censura de Franco, na Espanha, chegando até a participar do Exército Popular da Catalunia e que teve grande influência das idéias anarquistas e socialistas do período da República Catalã (que antecedeu o franquismo). Exemplos desse espírito de resistência é o fato de que sempre escreveu em Catalão - língua que chegou a ser proibida durante a ditadura - vários de seus trabalhos da "linha mais política".

Essa mistura de mágico, com performer, poeta, ativista, artista gráfico e artista plástico é, no mínimo, muito instigante.

De uma rica imaginação plástica, Brossa começou a produzir na década de 40 e continuou sem parar até seu falecimento em 1998, na véspera de seus 80 anos de idade. Mesmo com a crescente produção de poemas visuais e poemas objeto, que muitas vezes só foram realizados anos depois de concebidos, Brossa nunca abandonou o texto literário ou qualquer outra linguagem a qual se dedicou, continuou a escrever poemas em verso e textos em prosa durante toda sua vida. Durante sua trajetória foi diversificando cada vez mais sua obra: escrevia livros, fazia instalações, poemas objeto, escrevia texto para teatro e concebia roteiros para filmes de curta-metragem. Chegou a projetar um poema visual para ser pintado sobre um trem-bala.

Na década de 40, de quando datam os primeiros escritos de Brossa, seus poemas foram marcados pela prática de um peculiar neo-surrealismo, assim como a pintura de seus grandes amigos e parceiros Antoni Tápies e Joan Ponç. Nessa mesma década começou a fazer poemas com elementos visuais e alguns caligramas. Esse primeiro grupo de trabalhos verbo-visuais foi batizado pelo poeta como "poemas experimentais", pois o termo "poesia visual" ainda nem existia. Nessa época iniciou também a produção dos poemas cênicos - textos para teatro que englobam pequenas cenas, ações musicais e performances.

Ao conhecer e passar a conviver com o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto que tinha ido trabalhar em Barcelona como Cônsul do Brasil em 1947, Joan Brossa passa a ter contato com as idéias marxistas. Vários artistas e poetas de Barcelona freqüentavam a casa de João Cabral, que tornou-se um local de confluência de pessoas e idéias, um "território" protegido da repressão e censura da ditadura franquista.

João Cabral mantinha em sua casa uma pequena prensa manual Minerva onde imprimia, em tipografia, livros seus e de amigos. Fazia pequenas tiragens dos livros, mas, como nos conta o próprio Brossa, "não para vendê-los e sim para presenteá-los". Os dois primeiros livros de Brossa foram feitos naquela prensa por Cabral: o Sonets de caruixa (1950) e En va fer Joan Brossa (1951) com tiragem de 70 exemplares cada.

O contato com Cabral foi iluminador. As novas idéias que trouxe somadas ao contato com as idéias do progressismo catalão deram uma nova direção para a obra de Brossa a partir de 1950. Com o livro En va fer, Brossa iniciava um segundo nascimento, no qual superava a retórica formalista para reencontrar a realidade e a vida cotidiana, através de um realismo crítico (GUERRERO, 2001).

Em 1948, Brossa funda juntamente com Joan Ponç, Antoni Tápies, e outros a revista Dau a Set. Em 1951, faz seu primeiro poema com o uso de objetos.

Sobre o processo de passagem da poesia visual até o poema objeto, o próprio Brossa é quem conta: "Foi todo um processo. Eu comecei fazendo literatura com peruca, depois me concentrei na linguagem coloquial e depois passei ao objeto. Para mim a escrita e o trabalho com os objetos são ferramentas que me permitem colher a poesia, que como a eletricidade está em todas as partes, tem é que colhê-la. O poeta constrói pequenos veículos para transmitir a poesia. Duchamp encontrava uma coisa e a deixava assim. Eu gosto de alterar os objetos e fazer metáforas. Eu colho um fragmento da realidade mais comum, uma propaganda de um periódico, por exemplo, e gosto de tocá-lo um pouco, intervindo minimamente. Os objetos têm um sentido, eu o pego do cotidiano e lhe dou outro sentido, tratando de resgatá-lo dessa dependência funcional".

Somente a partir da publicação do livro Poesia Rasa em 1970 é que a obra de Brossa começa a ganhar um maior reconhecimento. É a partir daí que seus livros passam a ser publicados regularmente, alternando livros novos e antigos (inéditos) que tinham sido escritos durante a ditadura de Franco.

A exposição Joan Brossa ou As palavras são as coisas (Fundação Joan Miró, 1986) agrupou, pela primeira vez, um número considerável de poemas visuais, objetos e cartazes e marcou o início do reconhecimento internacional da obra plástica de Brossa que foi firmado de vez com a exposição antológica que realizou no Centro de Arte Rainha Sofia, em 1991 em Madrid.

O reconhecimento na Espanha, e no mundo, lhe permitiu a realização de uma série de projetos mais complexos que culminaram na realização das instalações e dos poemas transitáveis (esculturas-intervenções em espaços públicos).

A opção de Joan Brossa pela linguagem coloquial em seus versos desde o livro Em va fer, a realização de suas ações/apresentações nas ruas e metrôs, vários de seus trabalhos plásticos (principalmente os poemas objeto) e diversas de suas declarações mostram um artista inteiramente conectado com o cotidiano.

É do cotidiano que Brossa retira sua matéria-prima. E o espaço cotidiano é um dos espaços onde atua e intervém, como se ali fosse seu palco ou sua folha de papel imaginária onde inscreveu enormes poemas transitáveis.

A própria paixão pelo ilusionismo e pelos truques de mágica e a vontade de estar mantendo ações/apresentações nas ruas, o humor e caráter lúdico de vários de seus trabalhos nos mostram que Brossa foi uma figura engajada na tarefa de fazer o cotidiano ser mais poético. Ou melhor, na tarefa de fazer a poesia estar presente no dia-a-dia das ruas. Se considerarmos o ritmo de vida de um grande centro urbano, como Barcelona, é possível afirmar que todo esse trabalho aliando arte e vida no cotidiano mais simples é uma de suas grandes obras subversivas. Como uma batalha pela sobrevida da poesia frente a correria da metrópole. Como se Brossa fosse um guerrilheiro defendendo a sensibilidade de cada um de nós, lutando para "salvar a individualidade frente a tanta propaganda estúpida que leva à massificação em uma sociedade que transformou a técnica em um instrumento de domínio" – em palavras suas. A relação entre Brossa e o cotidiano é coroada com a realização dos poemas transitáveis, pois, com essas enormes esculturas com letras e símbolos lingüísticos, o espaço público é ocupado definitivamente por sua poesia.

Após 1991, Brossa é convidado a fazer e participar de numerosas exposições, entre elas: a Bienal Internacional de São Paulo de 1994 e a Bienal de Veneza de 1997 e exposições em Londres, Marselha, Valência e Kassel.

Após seu falecimento em 1998 é preparada uma grande retrospectiva de sua obra, a exposição Joan Brossa ou a revolução poética, que aconteceu em 2001, em Barcelona, novamente na Fundação Joan Miró, e abrangeu toda a sua produção, incluindo projetos, livros, poemas visuais e objetos, instalações, os poemas transitáveis, as suítes de poesia visual, cartazes, filmes, roteiros cinematográficos e encenações de seus poemas cênicos.


Publicado originalmente na: Revista Etcetera #13 - Artes Visuais
www.revistaetcetera.com.br