quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Nem só de pregação vive a missão


O antropólogo Marcos Pereira Rufino escreve sobre a atuação das missões junto aos índios, apontando como missionários cristãos estão envolvidos em projetos de educação, saúde e auto-sustentação no Brasil


A presença de missões religiosas cristãs entre os povos indígenas do país é, sabemos, uma realidade antiga, que se iniciou no momento mesmo da colonização do Brasil pelos portugueses. O quadro atual em que ocorre esta presença é complexo e envolve um conjunto muito heterogêneo de missionários. A evangelização dos povos indígenas não é uma preocupação exclusiva da Igreja Católica, mas também de uma miríade de agências religiosas protestantes. Estas, por sua vez, reproduzem no contexto da missão entre os índios as suas características de agentes religiosos relativamente independentes, multiplicando-se em diversas igrejas e denominações, com as respectivas diferenças em sua teologia, modo de atuar, converter.

A atuação da missão católica também não esconde a sua diversidade. Além do trabalho realizado pelas diversas ordens e congregações, cada qual com o seu carisma e projeto missionário próprio, há hoje a forte presença de missionários seculares, comprometidos diretamente com o plano pastoral da hierarquia eclesiástica do país. Estes últimos estão, em sua grande maioria, ligados ao Cimi - Conselho Indigenista Missionário, órgão anexo à CNBB, criado por ela com a finalidade de coordenar a ação missionária nacionalmente e sintonizá-la com as preocupações contemporâneas da Igreja Católica. Contrariamente aos missionários católicos das ordens e congregações, os cerca de 400 missionários do Cimi, distribuídos em 112 equipes, estão cada vez mais distantes do proselitismo religioso e concentram a sua atuação na política indigenista, desenvolvendo algum trabalho na área da saúde, educação, movimento indígena, assessoria jurídica etc.

Nos últimos anos vêm sendo desenvolvidos também alguns projetos de geração de alternativas econômicas, como por exemplo, o projeto de sustentatibilidade e ocupação territorial entre os Mura, cuja meta é a produção, beneficiamento e comercialização de frutas regionais, ou o projeto de desenvolvimento e disseminação entre comunidades indígenas e não-indígenas de técnicas apícolas e de industrialização de frutas regionais desenvolvido também no Amazonas. Ambos os projetos são apoiados pelo PDA, que são subprogramas do Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG-7). A importância dessa temática levou o órgão a constituir, na década de 90, a Articulação Nacional de Auto-Sustentação (Anas), que reúne missionários e assessores em um fórum comum para o aprofundamento do tema e o suporte às equipes missionárias e organizações indígenas no desenvolvimento destas atividades.

A inserção do Cimi no campo de ações visando a auto-sustentação de grupos indígenas se dá de modo peculiar: a elaboração de seus projetos é orientada por um nítido espírito anticapitalista e antiliberal, de maneira que se evita formular propostas que carreguem vestígios de empreendimento empresarial, obtenção de lucro ou acúmulo de riquezas. Grosso modo, o perfil das propostas de auto-sustentação elaboradas pelo Cimi procura situá-las como atividades de baixo impacto sobre as condições sociais e econômicas internas aos grupos indígenas que são beneficiados por elas. Estas propostas salientam também o sentido comunitário que estas atividades podem desempenhar no interior destas realidades.

Ainda no campo católico, não podemos ignorar que em algumas regiões o Cimi participa diretamente, através da pastoral indigenista diocesana local, da gestão dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, junto com as organizações indígenas e ONGs parceiras. É o caso da diocese de Boa Vista, em Roraima, cujos missionários atuam em parceria com o CIR, e da diocese de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste amazônico, em que estes atuam conjuntamente com a Foirn e o município.

A ação de missionários protestantes é ainda mais complexa. Além das centenas de grupos que freqüentemente são denunciados por suas práticas de claro desrespeito à diversidade cultural, com a imposição de valores, cultos e cosmologias estranhos aos índios, há também um conjunto de agentes missionários protestantes diretamente envolvidos na política indigenista. A maior parte das atividades desenvolvidas por estas denominações evangélicas, e que não são propriamente religiosas, estão na área da educação e da saúde. Nos é bastante conhecido o trabalho de sistematização lingüística e gramatical realizado em diversos povos, cujos resultados são aproveitados não apenas para a tradução da Bíblia no idioma nativo mas também para a estruturação de escolas indígenas e grupos de alfabetização. O desenvolvimento de ações dirigidas à saúde é freqüente em muitas missões protestantes, ocupando, muitas vezes, o espaço deixado pelo Estado. Em alguns contextos, a atuação destas missões em programas de saúde é a principal forma que elas tem de legitimar a sua presença entre os índios e, às vezes, de justificar a sua entrada em áreas de índios isolados.

Os grupos protestantes de maior destaque no cenário da política indigenista são o GTME (Grupo de Trabalho Missionário Evangélico) e o Comin (Conselho de Missão entre os Índios). Estas duas agências missionárias são muito próximas uma da outra. Apesar de estarem explicitamente comprometidas com a evangelização dos povos com quem atuam, ambas enfatizam o envolvimento missionário na educação, saúde e movimento indígena, atuando conjuntamente na realização de diversas atividades neste âmbito. Algumas vezes, elas agem em parceria com os missionários católicos do Cimi e ONGs na condução de atividades comuns. Podemos citar a sua participação conjunta no Comitê de Resistência Indígena, Negra e Popular, e na marcha indígena dos 500 anos, evento que propunha fazer uma contracelebração dos festejos oficiais realizados pelo governo e Igreja Católica.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010


A Saga de Davi Kopenawa Yanomami, por Bruce Albert


Davi Kopenawa, nascido em 1956, vive na aldeia yanomami de Watoriki, situada ao pé da serra do Demini ("serra do Vento"), no estado do Amazonas. Seu grupo de origem foi quase inteiramente aniquilado no alto rio Toototobi (perto da fronteira venezuelana) por duas epidemias sucessivas após contatos estabelecidos com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e com a missão evangélica Novas Tribos do Brasil (NTB) (1959-60, gripe [?]; 1967; sarampo) Criança, Davi Kopenawa perdeu, assim, a maior parte dos membros de sua família. Em seguida sofreu, e depois rejeitou, o proselitismo dos missionários da NTB, abandonando na adolescência sua região natal para trabalhar na Fundação Nacional do Índio (Funai) como intérprete. No começo dos anos 80, fixou-se em Watoriki, ali se casando com a filha do líder da comunidade, xamã renomado que o iniciou e, tradicionalista convicto, permanece seu mentor.

Ele é hoje a um só tempo chefe do posto indígena Demini e um dos mais influentes xamãs de Watoriki. A invasão de suas terras por cerca de 30 a 40 mil garimpeiros custou a vida, entre 1987 e 1990, de mais de mil Yanomami no Brasil. Chocado com essa tragédia que reavivou nele a lembrança das que dizimaram sua família nos anos 60, Davi Kopenawa engajou-se em uma luta incansável contra a destruição de seu povo e da floresta de sua terra. Graças a sua experiência com os brancos e à firmeza intelectual que lhe confere o saber xamanístico, tornou-se rapidamente o principal porta-voz da causa yanomami, no Brasil e no mundo. Visitou, ao longo dos anos 80 e 90, vários países da Europa e os Estados Unidos. Recebeu, depois de Chico Mendes, o prêmio Global 500 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e, recentemente, a Ordem de Rio Branco ao grau de cavaleiro.

O depoimento abaixo de Davi Kopenawa Yanomami publicado em: Novaes, Adauto (org.) - A Outra Margem do Ocidente, São Paulo: Minc - Funarte/Companhia Das Letras, 1999.


Descobrindo os brancos
Dos espíritos canibais


Há muito tempo, meus avós, que habitavam Mõramabi araopi, uma casa situada muito longe, nas nascentes do rio Toototobi, iam às vezes visitar nas terras baixas outros Yanomami estabelecidos ao longo do rio Aracá.

Foi lá que encontraram os primeiros brancos. Esses estrangeiros coletavam fibra de palmeira piaçaba ao longo do rio.(1) Durante essas visitas nossos mais velhos obtiveram seus primeiros facões. Eles me contaram isso muitas vezes quando eu era criança. Naquele tempo, eles só encontravam brancos ao viajar muito longe de sua aldeia e não iam vê-los sem motivo, simplesmente para visitá-los. Haviam visto suas ferramentas metálicas e as cobiçavam, pois possuíam apenas pedaços de metal que Omama deixara.(2) Era durante essas longas viagens que, de vez em quando, eles conseguiam obter um facão ou mesmo um machado. Trabalhavam então em suas plantações emprestando-os uns aos outros. Quando um tinha aberto sua plantação, passava-os a um outro e assim por diante. Eles emprestavam também essas poucas ferramentas metálicas de uma aldeia a outra.

Não era para procurar fósforos que iam ver os brancos tão longe, não: tinham seus paus de cacaueiro para fazer fogo. Evidentemente, eles achavam as panelas de alumínio muito bonitas, mas tampouco era por isso que faziam aquelas viagens: também tinham vasilhas de terracota para cozinhar sua caça. Era realmente por seus facões e seus machados que iam visitar aqueles estrangeiros.

Mas foi bem mais tarde, quando habitávamos Marakana, mais para o lado da foz do rio Toototobi, que os brancos visitaram nossa casa pela primeira vez. Na época, nossos mais velhos estavam ainda todos vivos e éramos muito numerosos, eu me lembro. Eu era um menino, mas começava a tomar consciência das coisas. Foi lá que comecei a crescer e descobri os brancos. Eu nunca os vira, não sabia nada deles. Nem mesmo pensava que eles existissem. Quando os avistei, chorei de medo. Os adultos já os haviam encontrado algumas vezes, mas eu, nunca! Pensei que eram espíritos canibais e que iam nos devorar. Eu os achava muito feios, esbranquiçados e peludos. Eles eram tão diferentes que me aterrorizavam. Além disso, não compreendia nenhuma de suas palavras emaranhadas. Parecia que eles tinham uma língua de fantasmas. Eram pessoas da "Comissão".(3) Os mais velhos diziam que eles roubavam as crianças, que já as haviam capturado e levado com eles quando tinham subido o rio Mapulaú, no passado.(4) Era por isso também que eu tinha muito medo: estava certo de que também iam me levar. Meus avós já haviam contado muitas vezes essa história, eu os ouvira dizer: “Sim, esses brancos são ladrões de crianças!”, e tinha muito medo. Por que eles levaram aquelas crianças? Eu me pergunto isso ainda hoje.

Quando aqueles estrangeiros entravam em nossa habitação, minha mãe me escondia debaixo de um grande cesto de cipó, no fundo de nossa casa. Ela me dizia então: "Não tenha medo! Não diga uma palavra!", e eu ficava assim, tremendo sob meu cesto, sem dizer nada. Eu me lembro, no entanto devia ser realmente muito pequeno, senão não teria cabido debaixo daquele cesto! Minha mãe me escondia pois também temia que os brancos me levassem com eles, como tinham roubado aquelas crianças, da primeira vez. Era também para me acalmar, pois eu estava aterrorizado e só parava de chorar quando estava escondido. Todos os bens dos brancos me assustavam também: tinha medo de seus motores, de suas lâmpadas elétricas, de seus sapatos, de seus óculos e de seus relógios. Tinha medo da fumaça de seus cigarros, do cheiro de sua gasolina. Tudo me assustava, porque nunca vira nada de semelhante e ainda era pequeno! Mas, quando seus aviões nos sobrevoavam, eu não era o único a ficar assustado, os adultos também tinham medo; alguns chegavam mesmo a romper em soluços, e todo mundo fugia para a mata vizinha! Nós somos habitantes da floresta, não conhecíamos os aviões e estávamos aterrorizados. Pensávamos que eram seres sobrenaturais voadores que iam cair sobre nós e queimar todos. Todos tínhamos muito medo de morrer! Eu me lembro que também tinha medo das vozes que saíam dos rádios e da explosão dos fuzis que matavam a caça. Perguntava-me o que todas aquelas coisas que pareciam sobrenaturais poderiam ser! Perguntava-me também por que aquelas pessoas tinham vindo até nossa casa.

Mais tarde, realmente comecei a crescer e a pensar direito, mas continuei a me perguntar: "O que os brancos vêm fazer aqui? Por que abrem caminhos em nossa floresta?". Os mais velhos me respondiam: "Eles vêm sem dúvida visitar nossa terra para habitar aqui conosco mais tarde!". Mas eles não compreendiam nada da língua dos brancos; foi por isso que os deixaram penetrar em suas terras dessa maneira amistosa. Se tivessem compreendido suas palavras, acho que os teriam expulsado. Aqueles brancos os enganaram com seus presentes. Deram-lhes machados, facões, facas, tecidos. Disseram-lhes, para adormecer sua desconfiança: "Nós, os brancos, nunca os deixaremos desprovidos, lhes daremos muito de nossas mercadorias e vocês se tomarão nossos amigos!". Mas, pouco depois, nossos parentes morreram quase todos em uma epidemia, depois em uma outra. Mais tarde, muitos outros Yanomami novamente morreram quando a estrada entrou na floresta (5)e bem mais ainda quando os garimpeiros chegaram ali com sua malária. Mas, dessa vez, eu tinha me tomado adulto e pensava direito; sabia realmente o que os brancos queriam ao penetrar em nossa terra.


Descobrir o Descobrimento



Os brancos são engenhosos, têm muitas máquinas e mercadorias, mas não têm nenhuma sabedoria. Não pensam mais no que eram seus ancestrais quando foram criados. Nos primeiros tempos, eles eram como nós, mas esqueceram todas as suas antigas palavras. Mais tarde, atravessaram as águas e vieram em nossa direção. Depois, repetem que descobriram esta terra. Só compreendi isso quando comecei a compreender sua língua. Mas nós, os habitantes da floresta, habitamos aqui há longuíssimo tempo, desde que Omama nos criou. No começo das coisas, aqui só havia habitantes da floresta, seres humanos.(6) Os brancos clamam hoje: "Nós descobrimos a terra do Brasil!". Isso não passa de uma mentira. Ela existe desde sempre e Omama nos criou com ela. Nossos ancestrais a conheciam desde sempre. Ela não foi descoberta pelos brancos! Muitos outros povos, como os Makuxi, os Wapixana, os Waiwai, os Waimiri-Atroari, os Xavante, os Kayapó e os Guarani ali viviam também. Mas, apesar disso, os brancos continuam a mentir para si mesmos pensando que descobriram esta terra! Como se ela estivesse vazia! Como se os seres humanos não a habitassem desde os primeiros tempos!

Os brancos foram criados em nossa floresta por Omama mas ele os expulsou porque temia sua falta de sabedoria e porque eram perigosos para nós!(7) Ele lhes deu uma terra, muito longe daqui, pois queria nos proteger de suas epidemias e de suas armas. Foi por isso que os afastou. Mas esses ancestrais dos brancos falaram a seus filhos dessa floresta e suas palavras se propagaram por muito tempo. Eles se lembraram: "É verdade! Havia lá, ao longe, uma outra terra muito bela!", e voltaram para nós. Na margem desta terra do Brasil aonde eles chegaram viviam outros índios. Esses brancos eram pouco numerosos e começaram a mentir: "Nós, os brancos, somos bons e generosos! Damos presentes e alimentos! Vamos viver a seu lado nesta terra com vocês! Seremos seus amigos!". Era com essas mesmas mentiras que tentavam nos enganar desde que também chegaram a nós. Depois dessas primeiras palavras de mentira eles foram embora e falaram entre si. Depois voltaram muito numerosos. No começo, sem casa nesta terra, ainda mostravam amizade pelos índios. Tinham visto a beleza desta floresta e queriam se estabelecer aqui. Mas desde que se instalaram realmente, desde que construíram suas habitações e abriram suas plantações, desde que começaram a criar gado e a cavar a terra para procurar ouro, esqueceram sua amizade. Começaram a matar as gentes da floresta que viviam perto deles.

Nos primeiros tempos, os seres humanos eram muito numerosos nesta terra. É o que dizem nossos mais velhos. Não havia doenças perigosas, sarampo, gripes, malária. Estávamos sozinhos, não havia garimpeiros para queimar o ouro, fábricas para produzir ferro e gasolina, carros e aviões. A floresta e os que a habitavam não estavam o tempo todo doentes. Foi apenas quando os brancos se tomaram muito numerosos que sua fumaça-epidemia xawara começou a aumentar e a se propagar por toda parte. Essa coisa má se tomou muito poderosa e foi assim que as gentes da floresta começaram a morrer.(8) Quando viviam sem os brancos nossos ancestrais não tinham fábricas, caçavam e trabalhavam em suas plantações para fazer crescer seu alimento. Também não sujavam todos os rios como esses brancos que agora procuram ouro em nossas terras.

"Nós descobrimos estas terras! Possuímos os livros e, por isso, somos importantes!", dizem os brancos. Mas são apenas palavras de mentira. Eles não fizeram mais que tomar as terras das gentes da floresta para se pôr a devastá-Ias. Todas as terras foram criadas em uma única vez, as dos brancos e as nossas, ao mesmo tempo que o céu. Tudo isso existe desde os primeiros tempos, quando Omama nos fez existir. É por isso que não creio nessas palavras de descobrir a terra do Brasil. Ela não estava vazia! Creio que os brancos querem sempre se apoderar de nossa terra, é por isso que repetem essas palavras. São também as dos garimpeiros a propósito de nossa floresta: "Os Yanomami não habitavam aqui, eles vêm de outro lugar! Esta terra estava vazia, queremos trabalhar nela!". Mas eu, sou filho dos antigos Yanomami, habito a floresta onde viviam os meus desde que nasci e eu não digo a todos os brancos que a descobri! Ela sempre esteve ali, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri esta terra porque meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo!". Ela existe desde sempre, antes de mim. Eu não digo: "Eu descobri o céu!". Também não clamo: "Eu descobri os peixes, eu descobri a caça!". Eles sempre estiveram lá, desde os primeiros tempos. Digo simplesmente que também os como, isso é tudo.

O Povo das Mercadorias


Quando viajei para longe, vi a terra dos brancos, lá onde havia muito tempo viviam seus ancestrais. Visitei a terra que eles chamam Eropa. Era sua floresta, mas eles a desnudaram pouco a pouco cortando suas árvores para construir suas casas. Eles fizeram muitos filhos, não pararam de aumentar, e não havia mais floresta. Então, eles pararam de caçar, não havia mais caça também. Depois, seus filhos puseram-se a fabricar mercadorias e seu espírito começou a obscurecer-se por causa de todos esses bens sobre os quais fixaram seu pensamento. Eles construíram casas de pedra, para que não se deteriorassem. Continuaram a destruir a floresta, dizendo-se: "Nós vamos nos tornar o povo das mercadorias! Vamos fabricar muitas delas e dinheiro também! Assim, quando formos realmente muito numerosos, jamais seremos miseráveis!". Foi com esse pensamento que eles acabaram com sua floresta e sujaram seus rios. Agora, só bebem água "embrulhada", que precisam comprar. A água de verdade, a que corre nos rios, já não é boa para beber.

Nos primeiros tempos, os brancos viviam como nós na floresta e seus ancestrais eram pouco numerosos. Omama transmitiu também a eles suas palavras, mas não o escutaram. Pensaram que eram mentiras e puseram-se a procurar minerais e petróleo por toda parte, todas essas coisas perigosas que Omama quisera ocultar sob a terra e a água porque seu calor é perigoso. Mas os brancos as encontraram e pensaram fazer com elas ferramentas, máquinas, carros e aviões. Eles se tomaram eufóricos e se disseram: "Nós somos os únicos a ser tão engenhosos, só nós sabemos realmente fabricar as mercadorias e as máquinas!". Foi nesse momento que eles perderam realmente toda sabedoria. Primeiro estragaram sua própria terra antes de ir trabalhar nas dos outros para aumentar suas mercadorias sem parar. Nunca mais eles se disseram: "Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de recriar uma outra?".

Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. Algumas cidades são belas, mas seu barulho não pára nunca. Eles correm por elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho e gente por toda parte. O espírito se toma obscuro e emaranhado, não se pode mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que dizer: "Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são mentirosos!". O pensamento desses brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é assim. Se os "brancos-espíritos-tatus-gigantes" [mineradoras] entram por toda parte sob a terra para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no mundo escuro e podre dos ancestrais canibais.(9)

Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapïripë, a caça e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos.

Queremos que a floresta permaneça silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e que se possam ver as estrelas. As terras dos brancos estão contaminadas, estão cobertas de uma fumaça-epidemia-xawara que se estendeu muito alto no peito do céu. Essa fumaça se dirige para nós mas ainda não chega lá, pois o espírito celeste Hutukarari a repele ainda sem descanso. Acima de nossa floresta o céu ainda é claro, pois não faz tanto tempo que os brancos se aproximaram de nós. Mas bem mais tarde, quando eu estiver morto, talvez essa fumaça aumente a ponto de estender a escuridão sobre a terra e de apagar o sol. Os brancos nunca pensam nessas coisas que os xamãs conhecem, é por isso que eles não têm medo. Seu pensamento está cheio de esquecimento. Eles continuam a fixá-lo sem descanso em suas mercadorias, como se fossem suas suas namoradas.

Notas

(1) Rio Aracá, que como o rio Toototobi, é um afluente do rio Demini, ele próprio tributário da margem esquerda do rio Negro.
(2) Os antigos Yanomami possuíam fragmentos de facões e de machados muito gastos, que obtinham por um complexo circuito de trocas interétnicas, mas cuja origem atribuíam a Omama, seu herói cultural.
(3) Uma equipe da Comissão dos Limites (CBDL) subiu o rio Toototobi em 1958-9.
(4) Alusão a uma primeira visita da CBDL ao rio Toototobi, em 1941.
(5) A BR-210 (Perimetral Norte), aberta em 1973-4 e abandonada em 1976, depois de cortar duzentos quilômetros a sudeste do território yanomami.
(6) A autodesignação dos Yanomami - yanomae thëpë - significa antes de tudo "seres humanos", e se aplica também aos outros índios, opondo-se aos animais, aos seres sobrenaturais e aos não-índios (napëpë).
(7) Os brancos foram criados por Omama a partir do sangue de um grupo de ancestrais Yanomami devorados por lontras e jacarés numa grande enchente provocada pela quebra de um resguardo menstrual.
(8) A expressão xawara wakëxi ("epidemia-fumaça") designa aqui a um só tempo as epidemias e a poluição, às quais é atribuída a mesma origem: a fusão do ouro, dos metais e dos carburantes extraídos da terra para produzir as mercadorias dos brancos e abastecer seus veículos.
(9) O universo yanomami compõe-se de quatro níveis superpostos suspensos em um "grande vazio". O mundo subterrâneo foi formado pela queda do nível terrestre na aurora dos tempos. É habitado pelos ancestrais Yanomami da primeira humanidade, que se tornaram monstros canibais (os aõpataripë).

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Missão Portas Abertas e a redução dos processos

por Leandro Lança


A ”Missão Portas Abertas” é uma instituição evangélica que tem por objetivo ajudar igrejas e cristãos evangélicos que sofrem perseguição religiosa em vários países, principalmente aqueles de maioria muçulmana. A instituição atua através de arrecadações provenientes de igrejas e evangélicos em todo o mundo. Segundo informações no site de Portas Abertas, este dinheiro é revestido de acordo com a situação de cada grupo perseguido:

“Se eles estão precisando de Bíblias, Portas Abertas irá encontrar um jeito de mandar-lhes. Se eles precisam de treinamento para seus líderes, Portas Abertas irá encontrar uma forma de fazer esse trabalho. Se eles precisam de oração pelos cristãos que estejam eventualmente na prisão, Portas Abertas irá mobilizar um exército internacional de oração para interceder pela sua libertação. E, com freqüência arrumamos um meio para conseguir alimento, roupas e remédios para os cristãos que estejam vivendo em dificuldades”.


A organização teve seu inicio com a atuação de um jovem missionário holandês conhecido como Irmão André. Em 1955 André fez uma viagem à Polônia, onde ficou impactado com a situação de cristãos vivendo sob a “Cortina de ferro” sem acesso a Bíblia. Dali em diante ele passaria a contrabandear Bíblias e suas aventuras encontram-se no livro: “Contrabandista de Deus-(1967)”.

Em praticamente 50 anos de atuação, a Missão Portas Abertas é reconhecida em vários países, principalmente por sua atuação em igrejas através de congressos, palestras, cursos, revistas e manuais. Os conteúdos destes meios têm em suma, a finalidade de conscientizar os evangélicos acerca da perseguição religiosa sofrida por seus irmãos de fé em países diversos, através de: dados básicos de demografia e geopolítica, além de histórias pessoais de crentes que sofrem perseguição.

Sem desmerecer a atuação desta instituição, que possui sua importância, gostaria de por em debate dois pontos preocupantes e discutíveis.
O primeiro ponto refere-se ao extremo reducionismo com que a Missão Portas Abertas divulga e “explica”, ou não explica, o fenômeno amplo e complexo da perseguição religiosa.

Quando o assunto é intolerância religiosa, sabemos que, em primeiro lugar há um longo processo histórico por trás de qualquer perseguição. Tratando-se de Cristianismo, sabe-se que após ter se tornado religião oficial do império Romano no século III, os cristãos anteriormente perseguidos, passaram a perseguir, e de lá pra cá, não deixaram de ter o gosto pelas “guerras santas”. Além do processo histórico há o político, e sabe-se também que, política e religião são esferas indissociáveis culturalmente dentro da tradição monoteísta. Sendo assim, não se explica a perseguição religiosa por parte dos muçulmanos, por exemplo, excluindo do debate as questões políticas que envolvem estes povos. Ainda além da política (sem sair dela), há a questão econômica. O conflito entre cristãos e muçulmanos na Nigéria, por exemplo, que recentemente teve repercussão internacional, sobretudo pelo número espantoso de mortos, envolve sérias questões puramente econômicas como, o desemprego e o acesso a áreas de cultivo. Além destas, por motivos pessoais deixo ainda de fora as questões culturais (por ser estudante de antropologia não quero ser acusado de proselitismo).

Alheia aos processos, ou no mínimo alienando seus interlocutores, a Missão não aborda causas fundamentais que poderiam explicar os conflitos e conseqüentemente melhorar a atuação. Tudo o que se lê, seja no site da instituição, blog, revistas, ou se ouve nas palestras oferecidas, são dados demográficos e casos pessoais do tipo: “Em tal país há 0,3 % de cristãos, lá uma família X que se converteu ao cristianismo está sendo perseguida”. Uma conseqüência direta deste tipo de abordagem rasa e unilateral, é a construção de um outro: terrorista, desumano e diabólico, no imaginário de uma população evangélica média formada pelo púlpito e pela TV. Há alguns anos, segundo informação veiculada na revista da instituição, Irmão André afirmou que o islamismo seria uma ameaça muito maior ao cristianismo do que foi o comunismo. Na matéria o articulista reconhece e enaltece a visão profética do fundador. Fato é que, a demonização do Islã e a preocupação com uma possível invasão muçulmana no ocidente se tornaram comuns entre instituições e igrejas evangélicas.

Diante do acúmulo de “desinformação” que ao longo da História levou o Ocidente a cometer etnocídios, e que levou “ontem mesmo”, boa parte dos evangélicos norte-americanos a apoiarem as guerras do Iraque e Afeganistão como justiça Divina, penso que a Missão Portas Abertas deveria mudar sua abordagem.
O segundo ponto discutível me parece óbvio como admirador dos ensinos e mandamentos de Cristo. Em uma de suas falas mais reveladoras ele diz:

Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons e vir chuvas sobre justos e injustos. Porque, se amardes os que vos amam, que recompensa tendes? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os gentios também o mesmo? Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.
Mateus 5.43-48


A partir dessas palavras, só posso entender que, Cristo olha do mesmo jeito para a igreja perseguida e para a mesquita perseguida. Entendo que o cristão que ora ou faz apenas pelo cristão não tem recompensa alguma. Percebo que a missão do seguidor de Cristo é lutar contra a intolerância, perseguição, morte, num todo, e não aquela exclusiva ao seu gueto.
Sei que a Missão Portas Abertas é limitada, e talvez ajudar financeiramente hindus e muçulmanos ainda esteja distante de sua realidade. Mas, na expectativa de que a instituição tenha algum mérito, alguma recompensa, peço que incluam em suas listas de oração aqueles que vos perseguem.

Deixo algumas dicas:

Peço que orem por muçulmanos que são perseguidos, inclusive por cristãos. Que incluam pedidos para que Deus intervenha no imperialismo, que os territórios ocupados por EUA e Israel sejam devidamente devolvidos. Que sejamos solidários, cristãos, humanos, que nos lembremos das torturas nas prisões de Abu Ghraib e Guantánamo (perpetuadas pela "América cristã).
Peço que divulguem nas igrejas, não somente as conseqüências trágicas que atingem cristãos, mas as causas dos processos históricos, políticos e sociais da perseguição, onde cristão algum fica isento de culpa.
Que seja divulgada a verdade complexa: Que toda perseguição religiosa é também política, e as vítimas destas duas potestades são no fim, filhos do mesmo Deus.


PS: Recentemente li no blog
da missão que o Irmão André tem salientando em diversas ocasiões que, os cristãos devem orar por líderes e extremistas islâmicos, de acordo com as palavras de Jesus sobre orar pelos que te perseguem. Mas a idéia é que as pessoas orem para que as lideranças perseguidoras se convertam ao cristianismo, e não simplesmente ore como ensinou Jesus. A segunda parte do versículo diz que o sol nasce sobre bons e maus, justos e injustos, por tanto, Deus não faz acepção de pessoas. A perfeição pretendida por Cristo está em amar o inimigo, o diferente, o perseguidor, independente de qualquer mudança. Colocar em aplicação apenas uma parte distorcida do ensino de Jesus, acaba por ser tão perigoso quanto não por em prática parte nenhuma. Esta oração com motivação sectária parece dizer duas coisas:

1- Os muçulmanos são intolerantes e belicosos, a conversão ao cristianismo os pacificará (mesmo a história do passado e presente desmentirem isto).

2- Não é necessário orar, muito menos pensar, nas demandas sociais, econômicas e políticas destas pessoas, só a conversão basta.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Algumas conclusões e reflexões


Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



Para terminar, algumas conclusões e reflexões. Começaremos por um apanhado dos pontos de divergência fundamentais que existem atualmente entre a Autoridade Palestina e Israel.

1 – A questão dos refugiados. Israel recusa-se a aplicar a Resolução 194. Aprovada pela assembléia Geral da ONU a 11 de Dezembro de 1948 e reafirmada todos os anos, essa resolução reconhece aos refugiados o direito de regressarem aos seus lares ou de serem indenizados, se assim o preferirem. Israel nega-se até a reconhecer a sua responsabilidade moral e legal pela existência dos refugiados. Durante décadas "legitimou" essa recusa dizendo que os palestinos abandonaram as suas casas por ordem dos países/exércitos árabes, que lhes teriam prometido o regresso dentro de pouco tempo. Ora, os estudos dos chamados "novos historiadores" israelitas da última década confirmaram o que os historiadores palestinos sempre disseram e os bons conhecedores da questão sabiam há muito, para não falar das vítimas: Essa versão da origem do problema dos refugiados palestinos é uma invenção da propaganda israelita. Por isso, Israel funda agora abertamente a recusa do regresso dos refugiados no que é, e sempre foi, a verdadeira razão: O regresso dos refugiados mudaria a composição étnica de Israel, que se "arriscaria" a deixar de ser um estado majoritariamente judaico. Ora, foi precisamente para evitar esse "perigo" que Israel expulsou muitos dos refugiados de suas casas.

Os refugiados palestinos são, de fato, muito numerosos. A 30 de Junho de 1999, a UNRWA recenseava 3.600.000. Não entram nesse número os que se tornaram refugiados em 1967 (mais de 50.000) e os seus descendentes. Sabe-se que existem mais umas centenas de milhar de palestinos que foram deslocados e não constam nas listas da UNRWA.

2 – Jerusalém Oriental. A parte oriental de Jerusalém foi conquistada em 1967. O plano da internacionalização de Jerusalém (na sua totalidade, indo até Belém) tendo sido aparentemente abandonado, a parte oriental da cidade é um dos territórios ocupados em 1967, que a Resolução 242 do Conselho de Segurança ordena devolver. O fato de Israel a ter anexado e de lhe ter alargado as fronteiras não muda de forma alguma o seu estatuto do ponto de vista da legalidade internacional. Essas medidas foram aliás declaradas nulas repetidas vezes pelas instâncias da ONU. No que se pode considerar um gesto de boa vontade, a Autoridade Palestina aceita ceder a Israel a soberania sobre partes de Jerusalém Oriental, nomeadamente o chamado "Muro das Lamentações", o único vestígio das construções ligadas ao templo judaico que se conhece12. Por ser o lugar do antigo templo judaico, do qual nada é visível, Israel opõe-se à soberania palestina sobre a Esplanada das Mesquitas, a qual com o santuário do Domo do Rochedo e a Mesquita de El-Aqsa, bem visíveis, é o terceiro lugar santo do islamismo.

3 – Assentamentos de Colonos. No decurso dos 35 anos de ocupação da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, Israel criou mais de duas centenas de Assentamentos de Colonos sobretudo na Cisjordânia. Para esse efeito, apoderou-se de todos os recursos hídricos e da maioria das terras da Cisjordânia: umas declarou-as baldias e as outras, nomeadamente as que pertenciam aos refugiados ou a outras pessoas ausentes em 1967, confiscou-as. Calcula-se que há hoje 200.000 israelitas a viver na Cisjordânia e outros tantos em Jerusalém Oriental, ao lado de cerca de 2.000.000 de palestinos. Na Faixa de Gaza há 6.900 israelitas, que dispõem de cerca de 20% do território, ao lado de cerca de 1.200.000 palestinos, dos quais cerca de 70% são refugiados. 33% dos palestinos da Faixa de Gaza vivem nos campos de refugiados administrados pela UNRWA. Superpovoada, a Faixa de Gaza é um dos territórios do mundo com maior densidade demográfica.

A instalação de cidadãos civis do estado ocupante num território ocupado é explicitamente proibida pela IV Convenção de Genebra relativa à Proteção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra que Israel assinou. Por isso, a colonização israelita de Jerusalém Oriental e dos demais territórios ocupados foi muitas vezes declarada ilegal pelas instâncias da ONU (Conselho de Segurança e assembléia Geral). Nas mesmas ocasiões as ditas instâncias internacionais exortaram Israel a anular todas as medidas tomadas no sentido da colonização dos territórios ocupados.

Ainda é preciso assinalar algumas imagens correntes do conflito israelo-palestino que deformam completamente a realidade.

1 – Embora haja uma imensa admiração pelas proezas de Israel, nomeadamente pelas suas façanhas militares, tende-se não raro a pensar que as partes envolvidas no conflito israelo-palestino têm forças mais ou menos iguais. Ora, isso é inteiramente falso. Israel é uma grande potência militar não só regional, mas também mundial. Tem um dos exércitos mais poderosos do mundo e um poder econômico apreciável.

Além disso, seja qual for o seu governo ou a política seguida, tem disposto e continua a dispor, incondicionalmente, do apoio econômico diplomático e político dos EEUU, seja qual for o partido da sua administração. Ora, como se sabe, os EUA são atualmente a única superpotência e agem como donos incontestados do mundo. Pelo contrário, os palestinos são na sua maioria um povo de refugiados sem nada que se compare, nem de muito longe, com os trunfos de Israel. Aliás, a incipiente infra-estrutura econômica palestina foi em grande parte destruída por Israel nos últimos meses. Dada a imensa desigualdade das forças, é quase impossível que haja autênticas negociações entre as duas partes. De fato, Israel tem agido e continua a agir como quem quer, pode e manda, com a certeza de que os palestinos terão de acabar mais uma vez por vergar a espinha e aceitar as suas condições, apanhar as migalhas que eles se dignam atirar-lhes. Longe de reconhecer a imensa injustiça que cometeu e continua a cometer para com os palestinos, Israel tem agido e age para com eles com uma prepotência e uma arrogância imensas, particularmente chocantes porque vindas de pessoas que sabem, ou deviam saber, melhor do que ninguém o que é ser vítima da injustiça. Esse comportamento tem provocado e provoca cada vez mais uma humilhação indizível nos palestinos. Do ponto de vista humano, é porventura isso o que mais profundamente os fere.

A desproporção abissal entre as forças em presença explica a diferença na natureza das armas usadas e nas formas de combate adotadas por cada uma das partes, deitando cada uma mãos dos meios de que dispõe. À desproporção nas forças em presença corresponde naturalmente a desproporção na grandeza da violência e do terror semeados por cada uma das partes, no número de vidas destruídas e na importância dos danos materiais causados.

2 – Não é raro que os meios de comunicação social apresentem os palestinos como os iniciadores do conflito que os opõe a Israel, isto é, os agressores. Ora, isso é pôr a realidade do avesso. Na melhor das hipóteses, os meios de comunicação social apresentam as duas partes como se estivessem num pé de igualdade do ponto de vista jurídico e moral. Ora, isso é falso. Dêem as voltas que quiserem, mas o fato insofismável é que Israel é o ocupante e os palestinos são os ocupados. Israel é o opressor e os palestinos são os oprimidos. Os palestinos lutam para se libertar da ocupação e da opressão. Israel luta para perpetuar a ocupação e a opressão. Os palestinos, autóctones da Palestina, não invadiram a terra de ninguém, não colonizaram ninguém. Foram, sim, as vítimas de um processo de colonização clássico, do qual, em última análise, as potências européias vencedoras da Primeira Guerra Mundial – a Grã-Bretanha em primeiro lugar – assim como os EUA são em grande parte os responsáveis. Como costuma repetir o Patriarca Latino de Jerusalém, Monsenhor Michel Sabbah, a ocupação israelita é, no caso presente, a violência fundamental. É ela que engendra as outras violências de que tanto se tem falado nestes últimos tempos. Ao reconhecerem o Estado de Israel, quando dos acordos de Oslo, os palestinos renunciaram aos cerca de 78% da sua pátria de que o dito Estado os despojou em 1948-1949. A única coisa que reclamam é a devolução dos cerca de 22% da Palestina que Israel conquistou em 1967 para neles criarem o seu estado, ao lado do Estado de Israel. Assiste-os em toda a linha a legalidade internacional, cuja aplicação não fazem senão exigir. Não deve esquecer-se que a dita legalidade internacional, na realidade, consagrou em boa parte fatos consumados impostos pela força, que sempre beneficiaram os israelitas e lesaram os palestinos. A criação de um estado árabe ao lado de um estado judaico na Palestina foi recomendada pela resolução 181 da assembléia Geral da ONU de 29 de Novembro de 1947. Repare-se que a ONU atribuía ao estado árabe 43% do território, não os 22% que os palestinos hoje reclamam. A justiça mais elementar exige que os refugiados palestinos possam regressar a suas casas, se assim o desejarem, ou sejam indenizados pelo que perderam. Foi isso mesmo o que ordenou a Resolução 194 do Conselho de Segurança da ONU de 1948, Resolução essa que tem sido reafirmada pelas instâncias da mesma organização internacional dezenas de vezes. A retirada de Israel da Cisjordânia/Jerusalém Oriental e da Faixa de Gaza foi ordenada pela resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU de 1967.

Teoricamente, essas decisões da ONU deveriam ser executadas pura e simplesmente, sem regateios. As negociações, caso as houvesse, normalmente deveriam ter só por objeto as questões práticas relativas à execução das ditas decisões. Claro que quando há boa vontade, em particular no mundo mediterrâneo, são sempre possíveis acomodamentos e arranjos.

Entre os inumeráveis conflitos que ensangüentaram e ensangüentam o mundo no último século, o que opõe israelitas e palestinos é um dos mais duradouros e, sem dúvida, o que mais eco encontra no mundo, pelo menos no mundo que é herdeiro da tradição bíblica por intermédio do cristianismo, do islamismo e do judaísmo. Os simples cidadãos que somos, com maior razão se não somos nem israelitas nem palestinos, sentimo-nos completamente impotentes perante ele. Há uma coisa que podemos fazer, porventura a única. É oferecer a nossa simpatia e a nossa solidariedade não aos que querem eternizar a injustiça, mas àqueles, israelitas e palestinos, que procuram pôr-lhe fim, pelo menos na medida em que isso ainda é possível.