sábado, 28 de janeiro de 2012

Dadaísmo de Berlim, uma breve introdução

por Leandro Lança

Um movimento surgido aparentemente em 1916 em torno do qual se reuniam interesses como oposição à primeira guerra mundial e ao nacionalismo; a crítica ao modo burguês irrelevante de ser ; ao militarismo e à domesticação da arte. Assim se mostrava ao mundo o espírito Dadá, que atravessou fronteiras geográficas e temporais se tornando, talvez, a vanguarda modernista mais decisiva para a arte contemporânea.

Para além do Dadá de Zurique (marco inicial com o Cabarét Voltaire organizado por Hugo Ball e Tzara) ou o de Nova Yorque (fomentado por Francis Picabia, Marcel Duchamp e Man Ray), ou, ainda, o de Paris, com ares mais literários, gostaria de destacar aqui o chamado dadaismo de Berlim.

O Dadá chega à Alemanha com a disperção do grupo inicial de Zurique (tendo em vista as possbilidades do fim da primeira guerra), mais especificamente através de Richard Huelsenbeck. Huelsenbeck, que participara ativamente do grupo de Zurique, retorna a Berlim em 1917 para concluir seus estudos em medicina. O que ele encontra é uma cidade em ruinas, esfomeada e desesperada frente a derrota eminente, bem diferente do paraíso suiço que deixara. Frente a esta realidade, escreve o primeiro manifesto dadaísta de Berlim, onde defende com beleza e entusiasmo uma arte mais próxima da vida:

"A arte ótima será aquela que apresenta coscientemente , em seu conteúdo, os milhares de problemas do cotidiano, uma arte que tenha sido visivelmente abalada pelas explosões da última semana, uma arte que esteja sempre tentando juntar os membros estilhaçados no desastre da véspera. Os artistas melhores, os mais extraordinários, serão aqueles que, a cada momento, arrancam os frangalhos de seus corpos para fora da frenética catarata da vida, que com mãos e corações ensanguentados se agarram à inteligência do seu tempo. Por acaso o expressionismo satisfez nossa necessidade de uma arte assim? De uma arte que deveria ser a expressão de nossas mais vitais preocupações? Não! Não! Não!"

Unindo-se a Huelsenbeck, artistas como George Grosz, Raoul Hausmann, os irmãos John Heartfield e Weiland Herzfelde organizam o "Clube Dadá" e promovem um movimento com atuações políticas mais fortes. Além das críticas típicas a arte institucionalizada do momento, os dadaístas de Berlim se envolviam nos levantes sociais daquele período. De um lado, contra os comunistas que ocuparam brevemente a cidade em novembro de 1918, e, de outro, ataques contra a República de Weimar, controlada por burgueses interessados em restaurar o capitalismo.

Em 1920, estes artistas organizam a Primeira Feira Internacional Dadaísta. Como uma paródia das feiras de arte comerciais, são expostas 174 obras em dois salões. O resultado em termos de público foi baixo, mas não deixou de gerar escândalo e até processo por insulto ao exército. Tudo por conta da obra de Rudolf Schlichter e John Heartfield "Arcanjo prussiano". Um boneco em tamanho real usando o uniforme oficial alemão e com a cabeça de um porco, que ficava pendurado no teto da exposição.

No que concerne a produção artística deste grupo, vale destacar o extenso uso e o aprimoramento da técnica de fotomontagem. Particularmente, Raoul Hausmann, Hannah Hoch, os irmãos John Heartfield e Weiland Herzfelde se dedicaram à fotomontagem como meio de quebrar a tendência da arte de criar uma ilusão da realidade e ao mesmo tempo tentaram expressar uma sociedade mutilada em todos os sentidos. Vale destacar também os cartoons e pinturas de George Grosz e Otto Dix , criadores de imagens grotescas e repulsivas que já demonstram, talvez profeticamente, uma sociedade vivenciando um período histórico que seria terreno fértil para as idéias de Hitler e a ascensão do nazismo.


Finalmente, a respeito do Dadá na Alemanha, é impossível não citar os impactos deste movimento nas cidades de Colônia e Hanover. Em Colônia destacam-se as atuações de Jean Arp e Max Ernst, que, além de periódicos, chegaram a realizar uma exposição tipicamente dadaísta em uma cervejaria. Já em Hanover, o destaque fica para o artista Kurt Schwitters, pouco conhecido, mas fundamental para os rumos futuros da arte. Seu Merzbau, uma instalação escultórica de objetos catados - pedaços e peças de madeira, moedas, bitucas de cigarro, tecido, jornal, areia, redes de fios, etc - que tomavam o interior de sua casa inteira, pode ser considerado a fundação da instalação e da arte com objetos achados.

Por essas e outras, nos tempos que correm (e próximo aos 100 anos do grande evento propulsor do Dadá), onde vivemos ainda sob a ameaça do capitalismo, do imperialismo, do militarismo, do fundamentalismo e de todo tipo de conservadorismo barato, faz-se necessário não apenas relembrar este dadaísmo engajado de Berlim, mas colocar em prática a herança deixada por ele.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Arte moderna e crítica conservadora: a paranóia de Monteiro Lobato e outros similares.


Em 1917 Anita Malfatti realizava sua segunda exposição individual e receberia talvez a crítica mais famosa da arte brasileira, quem já não ouviu falar em "Paranóia ou mistificação? A propósito da Exposição Malfatti" de Monteiro Lobato? O texto foi salvo pela história e hoje é um belo e acabado exemplo de crítica conservadora e registro de como a ignorância pode estar presente nas mentes mais cultas e lisonjeadas. Apesar de quase centenária, o teor argumentativo da crítica continua muito vivo quando o assunto é arte contemporânea (Ex: Ferreira Gullar e Affonso Romano de Sant'Anna). Faz lembrar ainda, o posicionamento antimodernista de cristãos neocalvinistas como já visto aqui no blog.

No livro "Crítica Cultural: Teoria e Prática", Marcelo Coelho usando a crítica de Lobato como modelo, identifica três traços básicos em seu antimodernismo: 1) o método de julgar uma obra nova a partir de critérios já estabelecidos, anteriores e externos à própria obra; 2) a avaliação de que vivemos num período de declínio, decadência, degeneração, doença cultural; e 3) a postulação de que o crítico de arte seria um representante do "homem comum", enganado pelo artista.

Vale a pena conferir na íntegra essa pérola do conservadorismo:




Paranóia ou mistificação? A propósito da Exposição Malfatti (Monteiro Lobato)



Há duas espécies de artistas. Uma composta dos que vêm as coisas e em conseqüência fazem arte pura, guardados os eternos ritmos da vida, e adotados, para a concretização das emoções estéticas, os processos clássicos dos grandes mestres.

Quem trilha esta senda, se tem gênio é Praxiteles na Grecia, é Rafael na Itália, é Reynolds na Inglaterra, é Dürer na Alemanha, é Zorn na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espanha. Se tem apenas talento, vai engrossar a plêiade de satélites que gravitam em torno desses sóis imorredoiros.

A outra espécie é formada dos que vêm anormalmente a natureza e a interpretam à luz das teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva. São produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência; são frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro. Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das vezes com a luz do escândalo, e somem-se logo nas trevas do esquecimento.

Embora se dêem como novos, como precursores de uma arte a vir, nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu como a paranóia e a mistificação.

De há muito que a estudam os psiquiatras em seus tratados, documentando-se nos inúmeros desenhos que ornam as paredes internas dos manicômios.

A única diferença reside em que nos manicômios essa arte é sincera, produto lógico dos cérebros transtornados pelas mais estranhas psicoses; e fora deles, nas exposições públicas zabumbadas pela imprensa partidária mas não absorvidas pelo público que compra, não há sinceridade nenhuma, nem nenhuma lógica, sendo tudo mistificação pura.

Todas as artes são regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem da latitude nem do clima.

As medidas da proporção e do equilíbrio na forma ou na cor decorrem do que chamamos sentir. Quando as coisas do mundo externo se transformam em impressões cerebrais, «sentimos». Para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em desarranjo por virtude de algum grave destempero.

Enquanto a percepção sensorial se fizer no homem normalmente, através da porta comum dos cinco sentidos, um artista diante de um gato não poderá «sentir» senão um gato; e é falsa a «interpretação» que o bichano fizer do totó, um escaravelho ou um amontoado de cubos transparentes.

Estas considerações são provocadas pela exposição da sra. Malfatti, onde se notam acentuadíssimas tendências para uma atitude estética forçada no sentido das extravagâncias de Picasso & Cia.

Essa artista possui um talento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através de uma obra torcida em má direção, se notam tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se, de qualquer daqueles quadrinhos, como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui umas tantas qualidades inatas, das mais fecundas na construção duma sólida individualidade artística.

Entretanto, seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios de um impressionismo discutibilíssimo, e pôs todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura.
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Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros ramos da arte caricatural. É a extensão da caricatura a regiões onde não havia até agora penetrado. Caricatura da cor, caricatura da forma – mas caricatura que não visa, como a verdadeira, ressaltar uma idéia, mas sim desnortear, aparvalhar, atordoar a ingenuidade do espectador.

A fisionomia de quem sai de uma de tais exposições é das mais sugestivas.

Nenhuma impressão de prazer ou de beleza denunciam as caras; em todas se lê o desapontamento de quem está incerto, duvidoso de si próprio e dos outros, incapaz de raciocinar e muito desconfiado de que o mistificaram grosseiramente.

Outros, certos críticos sobretudo, aproveitam a vasa para «épater le bourgeois» (chocar o burguês). Teorizam aquilo com grande dispêndio de palavreado técnico, descobrem na tela intenções inacessíveis ao vulgo, justificam-nas com a independência de interpretação do artista; a conclusão é que o público é uma besta e eles, os entendidos, um grupo genial de iniciados nas transcedências sublimes duma Estética Superior.

No fundo, riem-se uns dos outros – o artista do crítico, o crítico do pintor. É mister que o público se ria de ambos.
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«Arte moderna»: eis o escudo, a suprema justificação de qualquer borracheira.

Como se não fossem moderníssimos esse Rodin que acaba de falecer, deixando após si uma esteira luminosa de mármores divinos; esse André Zorn, maravilhoso virtuose do desenho e da pintura; esse Brangwyn, gênio rembrandtesco da babilônia industrial que é Londres; esse Paul Chabas, mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos femininos em botão.

Como se não fosse moderna, moderníssima, toda a legião atual de incomparáveis artistas do pincel, da pena, da água-forte, da «ponta-seca», que fazem da nossa época uma das mais fecundas em obras primas de quantas deixaram marcos de luz na história da humanidade.

Na exposição Malfatti figura, ainda, como justificativa da sua escola, o trabalho de um «mestre» americano, o cubista Bolynson. É um carvão representando (sabe-se disso porque o diz a nota explicativa) uma figura em movimento. Ali está entre os trabalhos da sra. Malfatti em atitude de quem prega: eu sou o ideal, sou a obra prima; julgue o público do resto, tomando-me a mim como ponto de referência.

Tenhamos a coragem de não ser pedantes; aqueles gatafunhos não são uma figura em movimento; foram isto sim, um pedaço de carvão em movimento. O sr. Bolynson tomou-o entre os dedos das mãos, ou dos pés, fechou os olhos e fê-lo passear pela tela às tontas, da direita para a esquerda, de alto a baixo. E se não fez assim, se perdeu uma hora da sua vida puxando riscos de um lado para outro, revelou-se tolo e perdeu o tempo, visto como o resultado seria absolutamente igual.

Já em Paris se fez uma curiosa experiência: ataram uma brocha à cauda de um burro e puseram-no de traseiro voltado para uma tela. Com os movimentos da cauda do animal a brocha ia borrando um quadro...

A coisa fantasmagórica disso resultante foi exposta como um supremo arrojo da escola futurista, e proclamada pelos mistificadores como verdadeira obra prima que só um ou outro raríssimo espírito de eleição poderia compreender.

Resultado: o público afluiu, embasbacou, os iniciados rejubilaram – e já havia pretendentes à compra da maravilha quando o truque foi desmascarado.

A pintura da sra. Malfatti não é futurista, de modo que estas palavras não se lhe endereçam em linha reta; mas como agregou à sua exposição uma cubice, queremos crer que tende para isso como para um ideal supremo.

Que nos perdoe a talentosa artista, mas deixamos cá um dilema: ou é um gênio o sr. Bolynson e ficam riscadas desta classificação, como insignes cavalgaduras cortes inteiras de mestres imortais, de Leonardo a Rodin, de Velazquez a Sorolla, de Rembrandt a Whistler, ou... vice versa. Porque é de todo impossível dar o nome de obra d’arte a duas coisas diametralmente opostas como, por exemplo, a «Manhã de Setembro» de Chabas e o carvão cubista do sr. Bolynson.

Não fosse profunda a simpatia que nos inspira o belo talento da sra. Malfatti, e não viríamos aqui com esta série de considerações desagradáveis. Como já deve ter ouvido numerosos elogios à sua nova atitude estética, há de irritá-la como descortês impertinência a voz sincera que vem quebrar a harmonia do coro de lisonjas.

Entretanto, se refletir um bocado verá que a lisonja mata e a sinceridade salva.

O verdadeiro amigo de um pintor não é aquele que o entontece de louvores; sim, o que lhe dá uma opinião sincera, embora dura, e lhe traduz chãmente, sem reservas, o que todos pensam dele por detrás.

Os homens têm o vezo de não tomar a sério as mulheres artistas. Essa é a razão de as cumularem de amabilidades sempre que elas pedem opinião.

Tal cavalheirismo é falso; e sobre falso nocivo. Quantos talentos de primeira água não transviou, não arrastou por maus caminhos, o elogio incondicional e mentiroso? Se víssemos na sra.Malfatti apenas a «moça prendada que pinta», como as há por aí às centenas, calar-nos-íamos, ou talvez lhe déssemos meia-dúzia desses adjetivos bombons que a crítica açucarada tem sempre à mão em se tratando de moças.

Julgamo-la, porém, merecedora da alta homenagem que é ser tomada a sério e receber a respeito de sua arte uma opinião sinceríssima – e valiosa pelo fato de ser o reflexo da opinião geral do público não idiota, dos críticos não cretinos, dos amadores normais, dos seus colegas de cabeça não virada – e até dos seus apologistas.

Dos seus apologistas, sim, dona Malfatti, porque eles pensam deste modo... por trás.