quarta-feira, 28 de julho de 2010

Palestina - Desde 1995

Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



No dia 23 de Outubro de 1998, Israel e a Autoridade Palestina assinaram o memorando de Wye River que previa a entrega à Autoridade Palestina de mais 13% do território da Cisjordânia no prazo de três meses, mas passados menos de dois meses, a 18 de Dezembro, Israel suspendeu a sua aplicação.

No dia 4 de Maio de 1999 terminou o período da autonomia palestina previsto na "Declaração de Princípios". Sob a instigação do Presidente dos EUA, Bill Clinton, Yasser Arafat e Ehud Barak assinaram, no dia 4 de Setembro do mesmo ano, o memorando de Charm ech-Cheikh, que redefinia o calendário para a aplicação do memorando de Wye River e, além disso, estipulava a abertura de dois corredores seguros entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza, a libertação de mais um grupo de prisioneiros palestinos e o começo das negociações sobre todas as questões ainda em suspenso. Tudo isso ficou letra morta. Bill Clinton convocou de novo Yasser Arafat e Ehud Barak com os quais se reuniu em Camp David de 11 a 24 de Julho. As negociações avançaram, mas não se chegou a um acordo. Seguiram-se ainda outras tentativas de negociações instigadas igualmente por W. Clinton, prestes a terminar o seu mandato. A última dessas tentativas teve lugar em Taba (Egito) de 21 a 27 de Janeiro de 2001, dias antes de os israelitas escolherem Ariel Sharon para seu primeiro-ministro em vez de Ehud Barak.

Resumindo: Os acordos de Oslo não criaram a dinâmica de paz que deles se esperava. Praticamente não se foi além da aplicação do que se previa que fosse só a sua primeira fase. É verdade que Israel se retirou das oito zonas urbanas da Cisjordânia e de cerca de 80% da Faixa de Gaza, deixando assim a maioria esmagadora dos palestinos sob a jurisdição exclusiva da Autoridade Palestina10. Repare-se, no entanto, que as oito zonas urbanas da Cisjordânia são ilhas num mar israelita11. Não havendo contigüidade territorial entre elas, estão isoladas umas das outras. Em condições "normais", essa situação obstrui seriamente a circulação de pessoas e bens e, por conseguinte, todas as atividades, nomeadamente a atividade econômica, dos palestinos. Em situações de "crise", ela permite ao exército israelita reocupar em poucos minutos, e com poucos meios (uns quantos tanques e buldózeres) as cidades palestinas ou sitiá-las, encarcerando nelas os seus habitantes. Pelo contrário, os colonos israelitas continuaram a evoluir à vontade num espaço aberto, dispondo para isso de uma moderna rede rodoviária própria, que não só lhes permite circular na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, mas também os liga ao território de Israel. Longe de parar, como deveria ter acontecido em conformidade com o espírito do "Processo de Oslo", a colonização, sobretudo da Cisjordânia, intensificou-se. Cresceram os Assentamentos de Colonos já existentes e criaram-se outros novos. Para esse efeito, confiscaram-se mais terras. Isto e o não-cumprimento por parte de Israel de outros acordos levaram os palestinos a perder a confiança no "processo de Oslo". A frustração, à altura da imensa esperança que o dito processo havia suscitado, levou os palestinos à beira da explosão. A visita de Ariel Sharon, então chefe da oposição israelita, à Esplanada das Mesquitas em Jerusalém, no dia 28 de Setembro de 2000, serviu de rastilho. O horror do que desde então se passa na Palestina tem ecoado ruidosamente em todo o mundo dia após dia, graças aos meios de comunicação social.

A guerra de 1967 e as suas conseqüências


A crescente mancha da invasão judia sobre a Palestina



Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002




Desde o fim da Guerra de Suez, em 1956, forças internacionais separavam os exércitos de Israel e do Egito e garantiam a liberdade de navegação no Golfo de Akabá. A 19 de Maio de 1967, o Secretário-Geral da ONU, U Thant, decidiu retirá-las, a pedido do Presidente do Egito Gamal Nasser. No dia 22 de Maio, Nasser fechou o Golfo de Akabá aos barcos israelitas. Israel ripostou no dia 5 de Junho com uma guerra-relâmpago durante a qual ocupou toda a Península do Sinai (egípcia) a Faixa de Gaza (sob administração militar egípcia) a Cisjordânia juntamente com Jerusalém Oriental (anexadas pela Jordânia em 1950) e o Planalto do Golã (sírio). Israel anexou a parte de Jerusalém recém-ocupada.

A chamada "Guerra dos Seis Dias" fez mais refugiados palestinos, da Cisjordânia e da Faixa de Gaza, alguns dos quais o eram pela segunda vez. Calcula-se que o seu número foi superior a 50.000. A maioria foi para a Jordânia. Os restantes foram para o Egito, a Síria e outros países.

No dia 22 de Novembro de 1967, o Conselho de segurança da ONU aprovou a resolução 242que se propunha formular os termos para uma paz justa e duradoura no Próximo Oriente, baseada no respeito pelos princípios da Carta da ONU e na inadmissibilidade da aquisição de territórios pela guerra. A resolução ordena a retirada das forças armadas israelitas dos territórios ocupados no recente conflito9 em troca do reconhecimento pelos estados árabes do Estado de Israel dentro das linhas do armistício de 1949. Além disso, a resolução ressalta a necessidade de garantir a liberdade de navegação através das águas internacionais da área e de dar uma solução justa ao problema dos refugiados. Longe de se retirar dos territórios recentemente ocupados, como exigia a resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU, Israel começou logo a colonizá-los com cidadãos seus.




De 1967 a 1995


A história do conflito israelo-palestino desde 1967 é um rosário de planos de paz abortados, de esperanças frustradas e, como nos períodos anteriores, de violência, sangue, destruição e lágrimas. Referiremos só, rapidamente, os fatos, os acontecimentos e as datas que nos parecem mais marcantes e susceptíveis de ajudar a compreender a situação atual.

Começaremos por assinalar uma mudança nos papéis desempenhados pelos intervenientes no conflito. A anexação da Cisjordânia pela Jordânia em 1950 e a passagem da Faixa de Gaza para a tutela do Egito levaram a uma espécie de eclipse do povo palestino. A situação mudou a partir de 1967. O povo palestino voltou a tomar em mãos o seu destino. Por mais que se tenha esforçado por negar a sua existência, Israel teve finalmente que reconhecer o povo palestino não só como povo, mas também como "interlocutor/inimigo" inevitável. Encarnou as aspirações nacionais palestinas a Organização de Libertação da Palestina (OLP) uma coligação de partidos ou grupos que havia sido criada em Jerusalém, em 1964. Tal como foi formulada em 1968, a Carta da OLP, na linha do que sempre fora a política palestina, propunha-se como objetivo a criação do Estado da Palestina em todo o território nacional. Isso implicava o desaparecimento do Estado de Israel. A carta da OLP considerava os judeus que viviam na Palestina antes da "invasão sionista" como palestinos com pleno direito à cidadania, como os demais habitantes: muçulmanos, cristãos e de outras religiões ou etnias.

A chefia da OLP esteve na Jordânia até 1971. Derrotada no conflito armado que a opôs ao Governo Jordaniano (Fevereiro e Setembro de 1970) a OLP foi expulsa desse país em 1971, instalando-se então no Líbano. Na seqüência desses acontecimentos, alguns grupos palestinos, que se apelidaram "Setembro Negro", lançaram-se numa campanha de guerrilha internacional, cujas ações mais espetaculares foram os numerosos desvios de aviões comerciais e o atentado contra os atletas israelitas que participavam nos Jogos Olímpicos de Munique a 5 e 6 de Setembro de 1972.

No dia 6 de Outubro de 1973, o Egito e a Síria tentaram, em vão, reconquistar militarmente cada qual os territórios conquistados por Israel em 1967. No dia 22 do mesmo mês, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a Resolução 338 que reafirma a validade da Resolução 242 e apela para um cessar-fogo e para negociações com vistas a "instaurar uma paz justa e duradoura no Próximo Oriente". Os combates cessaram três dias mais tarde.

No mês seguinte, a Liga Árabe, reunida na Cimeira de Argel (26 a 28 de Novembro de 1973) declarou a OLP único representante do povo palestino. Desde 1970 a assembléia Geral da ONU afirmava regularmente o direito do povo palestino à auto-determinação. No dia 13 de Novembro de 1974, Yasser Arafat fez um discurso na assembléia Geral da ONU. Esta reconheceu aos palestinos o direito à independência e concedeu à OLP o estatuto de observador. A idéia da criação do Estado da Palestina só em parte do território nacional, já abordada em Junho de 1974, foi aceite no 13º Conselho Nacional Palestino, de 12 a 20 de Março de 1977.

No dia 17 de Setembro de 1978, foram assinados os acordos de Camp David entre o Egito, Israel e os EUA. Israel devolveu o Sinai ao Egito. Paralelamente à retirada do Sinai, que terminou a 25 de Abril de 1982, Israel intensificou a colonização da Cisjordânia e do Golã. Em conformidade com os acordos de Camp David, o Egito e Israel começaram, a 25 de Maio de 1979, negociações sobre um estatuto de autonomia para os palestinos da Cisjordânia e de Gaza, não escondendo Israel a intenção de anexar esses territórios no termo dos cinco anos previstos para a autonomia.

No dia 6 de Junho de 1982
, Israel invadiu o Líbano com a intenção declarada de expulsar de lá a OLP. Nos termos de um cessar-fogo negociado sob a égide dos EUA, as forças da OLP foram evacuadas do Líbano entre 10 e 13 de Setembro desse ano, mudando-se a sua chefia para Tunes. Foi então que se deram os massacres de Sabra e de Chatila. Entre os dias 15 e 16, o exército de Israel ocupou a parte ocidental de Beirute. No dia 16, forças libanesas (milícias cristãs aliadas de Israel) entraram nos campos de refugiados palestinos de Sabra e de Chatila e mataram homens, mulheres e crianças (Embora se utilizem da palavra "cristãs", essas organizações israelitas, "milícias cristãs", não têm o aval, nem a mais remota participação da Igreja Católica, ou das outras Igrejas Cristãs). Os soldados israelitas que cercavam os campos assistiram aos massacres sem intervir. Segundo a comissão de inquérito oficial israelita houve 800 mortos; segundo a OLP, terá havido 1500.

A dita comissão israelita concluiu que Ariel Sharon, então Ministro da Defesa, foi indiretamente responsável pelo sucedido.

No dia 9 de Dezembro de 1987 rebentou a primeira Intifada (insurreição) em Gaza e na Cisjordânia contra a ocupação.

No dia 31 de Julho de 1988, o rei Hussein da Jordânia anunciou oficialmente que rompia "os vínculos legais e administrativos" do seu país com a Cisjordânia, renunciando à pretensão de soberania sobre esse território que havia sido anexado pelo seu avô em 1950.

No 19º Conselho Nacional palestino, reunido em Argel, a OLP proclama o Estado da Palestina no dia 15 de Novembro de 1988, aceita as resoluções do Conselho de Segurança da ONU 181, 242 e 338 e reafirma a condenação do terrorismo.

Na seqüência da chamada "Guerra do Golfo", houve a Conferência Internacional de Madrid (inaugurada no dia 30 de Outubro de 1991) e as primeiras negociações bilaterais entre Israel e três dos seus vizinhos árabes (Jordânia, Síria e Líbano). Os palestinos ainda não tiveram a sua delegação própria. Fizeram parte da delegação jordaniana.

Negociações secretas entre israelitas e palestinos tidas em Oslo, no Inverno de 1992-1993, levaram finalmente ao reconhecimento entre Israel e a OLP a 9 de Setembro de 1993. A 13 do mesmo mês Yasser Arafat e Isaac Rabin assinaram em Washington a "Declaração de Princípios sobre as Disposições Interinas de 'Auto-Governo'". A dita declaração determinava a entrega de parte da Cisjordânia e da Faixa de Gaza aos palestinos, entrega essa concebida como a primeira etapa de um processo que deveria desembocar, no prazo de cinco anos, na solução do conflito que opõe os palestinos e os sionistas/israelitas desde há quase um século. De fato, Yasser Arafat entrou em Gaza no dia 1º de Julho de 1994 e o exército de Israel terminou a retirada das cidades palestinas, exceto de Hebron, em Dezembro de 1995. Os palestinos viram nesse fato o começo da realização do sonho de um estado palestino independente, embora só em cerca de um quinto da sua pátria e dividido em duas partes (Cisjordânia e Faixa de Gaza) separadas pelo território de Israel. Incluindo Jerusalém Oriental, a Cisjordânia tem uns 5.850 Km2. A Faixa de Gaza tem uns 365 km2.

terça-feira, 27 de julho de 2010

A criação do Estado de Israel (14 de Maio de 1948) e suas conseqüências para o povo palestino


Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002




Como já o tinham feito em 1937 e pelas mesmas razões, os palestinos opuseram uma recusa formal ao plano de divisão. De fato, a ONU mostrou-se incapaz de o aplicar. Não se tendo previsto nada para substituir as forças britânicas, a sua retirada deixou os árabes e os judeus frente a frente. Os judeus asseguraram as posições dentro dos territórios que o plano da ONU lhes concedia e procuraram ocupar outros. A 14 de Maio de 1948, véspera do fim do Mandato e da retirada das últimas forças britânicas, os judeus proclamaram o Estado de Israel. A partir do dia 15 a guerra alargou-se com a entrada na Palestina de uma coligação de forças regulares transjordanianas, egípcias e sírias, ajudadas por contingentes libaneses e iraquianos.

Israel tinha já em 1948 uma enorme vantagem sobre a coligação árabe. O seu exército era mais numeroso, estava melhor treinado e melhor equipado. Além disso, Israel tinha o apoio das grandes potências e a simpatia da opinião pública ocidental. Os combates cessaram praticamente no dia 7 de Janeiro de 1949, graças à intervenção da ONU. Entre 23 de fevereiro e 20 de julho desse ano, os países árabes implicados na guerra, exceto o Iraque, assinaram armistícios com Israel.

Os territórios ocupados por Israel no fim da guerra constituíam cerca de 78% da Palestina. Tornaram-se, de fato, o território do Estado de Israel. Ficaram fora dele a cadeia de baixas montanhas do centro e do sul da Palestina, a chamada Cisjordânia, assim como a Faixa de Gaza. Jerusalém ficou dividida: a parte oeste da cidade extramuros ficou do lado de Israel; a cidade antiga e o bairro extramuros a norte ficaram do lado árabe. Israel declarou Jerusalém sua capital, decisão essa ignorada pela comunidade internacional, pois ia contra a Resolução 181 da Assembléia Geral da ONU de 1947, que recomendava a internacionalização da cidade. No dia 11 de Maio de 1949, o Estado de Israel foi admitido na ONU. A 24 de Abril de 1950, a Cisjordânia com a parte de Jerusalém sob domínio árabe foi anexada à Transjordânia, que passou a chamar-se Reino Hachemita da Jordânia. A Faixa de Gaza ficou sob administração militar egípcia.

Entre setecentos a novecentos mil palestinos do que se tornou o território de Israel, isto é, a esmagadora maioria da sua população autóctone, encontraram-se na situação de refugiados. Uns fugiram de suas casas aterrorizados com a aproximação das forças judaicas.

O pânico que se abateu sobre a população palestina foi criado em boa parte pelos massacres cometidos pelas forças judaicas em vários pontos do país. O mais conhecido é o de Der Yassin, que era então uma aldeia na vizinhança de Jerusalém. As suas terras estão hoje ocupadas por Giveat Chaul, um bairro da cidade. A 9 de Abril de 1948, um comando do Irgun e do Stern entrou em Der Yassin e massacrou mais de cem pessoas, homens, mulheres e crianças. A notícia desse massacre provocou a fuga de cerca de 100.000 pessoas da região de Jerusalém. Outros palestinos foram expulsos à força. Entre os vários casos conhecidos, os de maiores proporções tiveram lugar em Lida (a atual cidade de Lod) e Ramlé. Uma escaramuça com tropas árabes ocorrida no dia 12 de Julho de 1948 serviu de pretexto ao exército de Israel para uma violenta repressão que custou a vida a 250 pessoas, algumas das quais eram prisioneiros desarmados, assim como para a expulsão de cerca de 70.000 pessoas, algumas das quais já eram refugiadas. A ordem de expulsão foi dada pelo próprio Primeiro-Ministro, David ben Gurion. Os seus executores foram Igal Alon e Isaac Rabin. A Galiléia foi a região do território de Israel onde ficaram mais palestinos. As zonas de maior densidade populacional palestina ficaram sob administração militar até 8 de Dezembro de 1966.

A 11 de Dezembro de 1948 a ONU aprovou a resolução 194 que reconhece aos refugiados palestinos o direito de regressarem aos seus lares ou de serem indenizados, se assim o preferirem. Apesar de o preâmbulo da resolução que o admitiu na ONU mencionar explicitamente a aplicação desta resolução, Israel recusou-se e continua a recusar-se a aplicá-la. Apressando-se a arrasar as aldeias palestinas que tinham sido esvaziadas dos seus habitantes (o número habitualmente avançado é de cerca de 500 localidades) e distribuindo as suas terras aos imigrantes judeus, Israel tornou impossível o regresso de uma boa parte dos refugiados aos seus lares. A esmagadora maioria dos refugiados amontoou-se em acampamentos na Faixa de Gaza, na Cisjordânia, na Jordânia, na Síria e no Líbano. No dia 1º de Maio de 1950 a ONU criou a UNRWA, a agência internacional que se ocupa deles.

Desde a criação do Estado de Israel, o conflito que o opõe aos palestinos tem sido o epicentro de um conflito entre Israel e o conjunto dos países árabes, com fortes repercussões mundiais. Esse conflito foi, em particular, a causa, ou pelo menos a ocasião, da emigração da maioria esmagadora dos judeus dos países árabes para a Palestina/Israel a partir dos últimos anos da década de 1940. As circunstâncias variaram ligeiramente segundo os países. De um modo geral, pode dizer-se que uns emigraram por causa da hostilidade de que o conflito os tornou alvos nos seus respectivos países e os outros foram "puxados" ou "empurrados" por Israel, desejoso de multiplicar o mais rapidamente possível a sua população judaica por razões nacionalistas, militares e econômicas, repovoando assim o território que havia sido praticamente esvaziado da sua população palestina. De fato, os "judeus orientais" depressa se tornaram maioria em Israel, mas o aparelho de estado e o poder econômico ficaram bem firmes nas mãos dos askenazes. A importância numérica entre os dois grupos mudou entretanto a favor dos askenazes com os numerosos imigrantes vindos, nas últimas décadas, das repúblicas soviéticas, antes e depois da dissolução da União Soviética.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Palestina - Mandato britânico (1922-1948)


Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



Os palestinos viram no patrocínio que deram primeiro a Grã-Bretanha e depois a Liga das Nações ao projeto sionista de criação do lar nacional judaico na Palestina a negação do seu direito à independência. Ora, tanto a Grã-Bretanha como a Liga das Nações, explícita ou implicitamente, não só lhes tinham reconhecido esse direito, mas também lhes tinham prometido o seu gozo pleno a curto prazo. Por isso, além do mais, os palestinos sentiram-se defraudados. Naturalmente, opuseram-se ao projeto da criação do lar nacional judaico na Palestina desde o primeiro instante – logo que tiveram conhecimento da Declaração Balfour – e tentaram, por todos os meios, impedir a sua realização, pois temiam que dela resultasse a sua submissão, não só política mas também econômica, aos sionistas, passando assim do domínio turco para o domínio judaico, com um intervalo britânico. Apresentaram protestos contra a Declaração Balfour à Conferência de Paz de Paris e ao Governo Britânico. A primeira manifestação popular contra o projeto sionista teve lugar a 2 de Novembro de 1918, primeiro aniversário da Declaração Balfour. Essa manifestação foi pacífica, mas a Resistência depressa se tornou violenta, expressando-se em ataques contra os judeus que degeneravam em confrontos sangrentos. Houve motins em 1920, durante a Conferência de San Remo que distribuiu os Mandatos, em 1921, 1929 e 1933. De um modo geral, as erupções de violência eram cada vez mais graves à medida que o Mandato se prolongava e a colonização sionista se estendia e fortalecia. Os acontecimentos desenrolavam-se segundo uma seqüência que se tornou habitual. A potência mandatária respondia aos motins nomeando uma comissão real de inquérito, cujas recomendações reconheciam a legitimidade das reivindicações palestinas e levavam a anunciar ou a esboçar tímidas medidas tendentes a satisfazê-las. Mas, dado que contrariavam o objetivo primordial do Mandato, essas medidas ficavam letra morta ou eram depressa esquecidas. E o ciclo recomeçava.

A Resistência palestina culminou na revolta de 1936-1939. Em Abril de 1936, distúrbios locais entre árabes e judeus degeneraram numa revolta generalizada dos palestinos. A revolta já não visava só a colonização sionista. Dirigia-se sobretudo contra as autoridades britânicas, o poder estrangeiro, de quem os palestinos exigiam a constituição de um governo nacional. As autoridades britânicas ripostaram com uma repressão violenta e os sionistas com represálias.

Os palestinos começaram uma greve geral a 8 de Maio de 1936 coordenada pelo Alto Comitê Árabe, que era composto por representantes dos principais partidos. Terminaram-na em Outubro do mesmo ano como resposta ao anúncio de mais uma Comissão Real de Inquérito. A trégua foi de pouca dura, a revolta não tardando a recomeçar. Tendo chegado à conclusão de que os palestinos não renunciariam à independência, os britânicos encararam em 1937 a hipótese de dividir a Palestina em dois estados, um árabe e o outro judaico. Essa solução não satisfazia nenhuma das partes. Os palestinos não renunciavam a uma parte do seu território. Os sionistas, que viam com razão nesse plano um desvio da política oficial não só britânica mas também internacional, ainda não aceitavam a idéia de criar o estado judaico só numa parte da Palestina, o que aparentemente significaria renunciar à reivindicação da totalidade do país. A revolta palestina continuou e durou até 1939. Considerando inviável o plano de divisão da Palestina, os britânicos fazem marcha atrás e propõem no "Livro Branco" de 1939 a criação de um só estado para árabes e judeus, no prazo de dez anos. O mesmo documento propunha o fim da imigração judaica dentro de cinco anos e limitava a 75.000 o número de imigrantes durante esse prazo de tempo. Além disso, previa uma regulamentação estrita da compra de terras pelas organizações judaicas. Esse conjunto de medidas implicava que os árabes constituiriam um pouco mais de dois terços dos cidadãos do Estado da Palestina. O peso dos dois povos na administração do Estado seria proporcional à sua importância numérica. As autoridades mandatárias tentaram executar as recomendações do "Livro Branco"
de 1939, mas sem verdadeiro êxito.

O "Livro Branco" de 1939 confirmou a viragem na política britânica já esboçada dois anos antes. Ao abandonar a idéia da criação de um estado judaico, as autoridades mandatárias romperam com a política seguida até então. Isso representava um sério revés para os sionistas. Estes tiveram que adotar uma nova estratégia, a qual comportou três elementos principais. Promoveram a imigração ilegal, tarefa essa facilitada pelo genocídio judaico que a Alemanha nazista estava então a perpetrar na Europa central e oriental. Assim a Palestina aparecia como o lugar de refúgio para os judeus europeus, sobretudo do centro e do leste. Além disso, os sionistas procuraram obter o apoio dos Estados Unidos para substituir o apoio britânico. Alguns grupos judeo-sionistas lançaram-se numa campanha de sabotagens e terrorismo contra as autoridades britânicas e a população palestina.

Nessa altura a Haganá não era o único grupo armado judaico. Havia também o Irgun e o Stern8, que se destacaram por sua violência e ações terroristas. Entre as numerosas ações terroristas realizadas pelo Irgun contra as autoridades britânicas, a mais conhecida é o atentado do Hotel King David em Jerusalém, onde estava instalada a administração governamental. A explosão de uma ala do edifício, no dia 22 de Julho de 1946, custou a vida a 91 pessoas, das quais 86 funcionários (britânicos, árabes e judeus).

Declarando-o inviável por ter duas missões inconciliáveis, a Grã-Bretanha renunciou ao Mandato e remeteu a questão da Palestina para a sucessora da Liga das Nações, a Organização das Nações Unidas (ONU), em Fevereiro de 1947. A 29 de Novembro de 1947 a assembléia Geral da ONU, retomando uma idéia que já tinha sido proposta dez anos antes, aprovou a resolução 181 que recomendava a divisão da Palestina em dois estados, um judaico e o outro árabe. Os dois estados estariam unidos do ponto de vista econômico. Jerusalém (incluindo Belém) não pertenceria a nenhum dos estados, mas formaria um corpus separatum sob a jurisdição da ONU. Passados dez anos haveria um referendo entre os habitantes da cidade sobre o seu regime. O plano deveria entrar em vigor dois meses depois do fim do Mandato que a Grã-Bretanha fixou para o dia 15 de Maio de 1948.

A Primeira Guerra Mundial e a Palestina

Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



A Primeira Guerra Mundial teve conseqüências decisivas para a Palestina. As potências aliadas não esperaram pelo fim da guerra para preparar o desmantelamento e a liquidação do império turco, aliado da Alemanha. Procurando aproveitar-se do nacionalismo árabe, a Grã-Bretanha prometeu ao cherife Hussein de Meca o seu apoio para a criação de um estado árabe independente tendo por fronteira ocidental o mar Vermelho e o Mediterrâneo, em troca da revolta árabe contra a Turquia. De fato, a Palestina, que faz parte do território do anunciado estado árabe, era cobiçada ao mesmo tempo pela Grã-Bretanha e pela França, mas as duas potências admitiram o princípio da sua internacionalização nos acordos secretos de Sykes-Picot de 16 de Maio de 1916. Esse fato não impediu a Grã-Bretanha de prometer no ano seguinte, na chamada Declaração Balfour, à Federação Sionista que faria todo o possível para o estabelecimento de "um lar nacional para o povo judaico" (a national home for the Jewish people) na Palestina. Para os sionistas, o circunlóquio "um lar nacional para o povo judaico" designava um estado judaico ou um estado dos judeus. O movimento sionista evitava o termo "estado", falando antes de "lar nacional" ou de "pátria", para não exacerbar a oposição turca ao projeto.

De fato, as forças britânicas, às quais se renderam as forças turcas em Jerusalém a 9 de Dezembro de 1917, terminaram a ocupação da Palestina em Setembro de 1918. A Palestina ficou então sob administração militar britânica, a qual foi substituída por uma administração civil a 1º de Julho de 1920. Entretanto, na Conferência da Paz reunida em Paris, em Janeiro de 1919, as Potências Aliadas decidiram que os territórios da Síria, do Líbano, da Palestina/Transjordânia e da Mesopotâmia não seriam devolvidos à Turquia, mas passariam a formar entidades distintas, administradas segundo o sistema dos Mandatos. Criado pelo artigo 22 do Pacto da Liga das Nações a 28 de Junho de 1919, o sistema dos Mandatos destinava-se a determinar o estatuto das colônias e dos territórios que se encontravam sob o domínio das nações vencidas. O dito documento declara que "algumas comunidades outrora pertencentes ao Império Turco atingiram um estado de desenvolvimento" que permite reconhecê-las provisoriamente como nações independentes. Em relação a essas nações, o papel das potências mandatárias seria ajudá-las a instalar a sua administração nacional independente. O mesmo documento estipula ainda que os desejos dessas nações devem ser uma consideração principal (a principal consideration) na escolha da potência mandatária. Na conferência de San Remo a 25 de Abril de 1920, o Conselho Supremo Aliado repartiu os Mandatos para essas nações entre a França (Líbano e Síria) e a Grã-Bretanha (Mesopotâmia, Palestina/Transjordânia). O Mandato para a Palestina, que incorpora a Declaração Balfour sobre o estabelecimento do "lar nacional para o povo judaico", foi aprovado pelo Conselho da Liga das Nações a 24 de Julho de 1922, tornando-se efetivo a 29 de Setembro do mesmo ano. Ao abrigo do disposto no art. 25 do Mandato para a Palestina, o Conselho da Liga das Nações decidiu a 16 de Setembro de 1922 excluir a Transjordânia de todas as cláusulas relativas ao lar nacional judaico, e dotá-la com uma administração própria. De fato, o território que os sionistas pretendiam para nele estabelecer o seu estado era bastante mais vasto do que a Palestina. Abarcava também toda a parte oeste da Transjordânia, o planalto do Golã e a parte do Líbano a sul de Sidão.

Como previsto
, todas essas nações se tornaram efetivamente independentes no curso das três décadas seguintes: O Iraque (Mesopotâmia) a 3 de Outubro de 1932; o Líbano, a 22 de Novembro de 1943; a Síria, a 1º de Janeiro de 1944 e, finalmente, a Transjordânia, a 22 de Março de 1946. A única exceção foi a Palestina.

O obstáculo que fez descarrilar o processo da independência da Palestina foi a adoção pela Liga das Nações, seguindo nisso as pegadas da Grã-Bretanha, do projeto sionista da criação do "lar nacional para o povo judaico" nesse país.

A Organização Sionista Mundial tinha entretanto amadurecido esse projeto e tinha-lhe granjeado apoios muito sólidos, vindo-lhe o principal da Grã-Bretanha. Esta expressou o seu patrocínio ao projeto sionista na já referida Declaração Balfour. Trata-se de uma carta que A. J. Balfour, Ministro dos Negócios Estrangeiros, escreveu, a 2 de Novembro de 1917, ao Lorde L. W. Rothschild, representante dos judeus britânicos, e, por seu intermédio, à Federação Sionista. Numa altura em que a Palestina ainda era oficialmente território turco, o Governo de Sua Majestade Britânica declara à Federação Sionista ver com bons olhos o estabelecimento de "um lar nacional para o povo judaico" nesse país e compromete-se a fazer todo o possível para facilitar a realização desse projeto. A carta acrescenta uma ressalva segundo a qual "nada deverá ser feito que prejudique os direitos cívicos e religiosos das comunidades não-judias que existem na Palestina". As ditas "comunidades não-judias" constituíam então mais de 90 % da população. De fato, em 1918, a Palestina tinha 700.000 habitantes: 644.000 árabes (574.000 muçulmanos e 70.000 cristãos) e 56.000 judeus.

A Declaração Balfour era um compromisso que a Grã-Bretanha assumia, por razões que lhe eram próprias, para com a Federação Sionista. Mas entretanto ela recebeu o aval das Principais Potências Aliadas e foi incorporada no Mandato para a Palestina, aprovado pela Liga das Nações a 24 de Julho de 1922. Com efeito, o essencial da Declaração Balfour é citado explicitamente no § 2 do preâmbulo do dito documento. É ainda reforçado no § 3, graças a dois elementos que não constavam na Declaração Balfour, isto é, a menção da ligação histórica do povo judaico com a Palestina e a idéia da reconstituição do seu lar nacional nesse país. Dos vinte e oito artigos do texto do Mandato seis têm por objeto o estabelecimento do lar nacional judaico ou medidas com ele relacionadas. O art. 2, que é o primeiro de caráter programático, começa assim: "A (Potência) Mandatária terá a responsabilidade de pôr o país em condições políticas, administrativas e econômicas que assegurem/garantam o estabelecimento do lar nacional judaico (of the Jewish national home), como está estipulado no preâmbulo...". Outros cinco artigos tratam de medidas destinadas a realizar esse programa. Essas medidas dizem respeito: ao papel de conselheira de uma "Agência Judaica apropriada" nos diferentes domínios de governo (art. 4); às facilidades que devem ser concedidas aos judeus nas questões relativas à imigração, assim como no que respeita à sua instalação no país, inclusive nas terras do Estado ou nos baldios (art. 6); às facilidades que devem ser concedidas aos judeus na obtenção da nacionalidade (art. 7); à concessão de obras e serviços públicos à Agência Judaica (art. 11b); à imposição do hebraico como língua oficial ao lado do inglês e do árabe (art. 22), embora os judeus fossem então só um pouco mais de 11 % da população. A Palestina tinha nessa altura 757.182 habitantes, dos quais 83.794 eram judeus.

Sem excluir formalmente o objetivo normal do tipo de Mandato aplicado aos países árabes do império otomano, que era levar à plena independência a população que então os habitava, o Mandato para a Palestina tinha outro objetivo, que lhe era próprio, isto é, promover a criação de um lar nacional judaico – subentenda-se a criação de um estado judaico – com gente que, na sua maioria esmagadora, estava ainda espalhada pelo mundo e, por conseguinte, deveria ser trazida de fora. O seu documento fundante não deixa dúvidas de que o objetivo prioritário do Mandato para a Palestina – para não dizer o seu verdadeiro objetivo – era criar o lar nacional judaico. É verdade que o documento também menciona as comunidades não-judaicas então existentes na Palestina e os seus direitos cívicos e religiosos – não refere os seus direitos políticos – mas as suas menções vêm em segundo lugar e expressam-se sob a forma de ressalvas feitas às medidas destinadas a implementar o projeto sionista.

Graças ao Mandato para a Palestina, o patrocínio do projeto sionista, que era um elemento da política britânica, tornou-se política oficial da Liga das Nações. Esta não só deu ao projeto sionista a caução internacional mas forneceu-lhe também os meios para a sua realização. A Grã-Bretanha, a quem o Conselho Supremo Aliado (isto é, os vencedores da guerra) confiara o Mandato da Palestina, era sem dúvida alguma a potência mais indicada para implantar a política da Liga das Nações em relação a esse país. De fato, a administração britânica procurou cumprir fielmente enquanto pôde a missão que lhe fora confiada.

Por seu lado, as organizações sionistas aproveitaram as infra-estruturas administrativas e econômicas que o Mandato pôs à sua disposição para acelerar a realização do projeto de criação do Estado judaico na Palestina. Para isso intensificaram a imigração dos judeus da Europa oriental e central, em três vagas principais: em 1919-1923, 1924-1928 e 1932-1940. Em 1931 os judeus eram 174.610 de um total de 1.035.821 habitantes da Palestina. Em 1939, já são mais de 445.000 e em 1946 atingem o número de 808.230 de um total de habitantes da Palestina respectivamente de 1.500.000 e de 1.972.560. Por outro lado, o Fundo Nacional Judaico, isto é, o fundo da Organização Sionista Mundial para a compra e o desenvolvimento da terra, intensificou a aquisição de terras. Estas tornavam-se "propriedade eterna do povo judaico", inalienável e que só podia ser arrendada a judeus. No caso das explorações agrícolas, até a mão de obra devia ser exclusivamente judaica. Por fim, os sionistas criaram em pouco tempo as principais estruturas do futuro estado, nomeadamente um exército clandestino (a Haganá).

A maneira como os vencedores da Primeira Guerra Mundial decidiram o destino da Palestina, servindo-se para isso da Liga das Nações, é quase uma caricatura da duplicidade e prepotência que não raro caracterizam as relações internacionais. De fato, há especialistas do Direito Internacional que questionam a legalidade das decisões da Liga das Nações em relação à Palestina em nome das regras que ela própria fixara. Assim, apesar de ter classificado a Palestina num grupo de nações às quais reconhecia imediatamente a independência formal e prometia a independência efetiva a curto prazo, a Liga das Nações impôs-lhe um Mandato cujo objetivo prioritário não era a instalação da administração palestina nacional, como previa o documento que instituiu o sistema dos Mandatos, mas, sim, a criação do "lar nacional judaico" com gente que ainda estava espalhada pelo mundo. Ora, este objetivo não só contrariava o processo de transição para a independência política efetiva da Palestina, mas era incompatível com o próprio princípio da sua independência com a população que ela então tinha, princípio esse que a Liga das Nações admitira previamente. Por outro lado, tendo nomeado a Grã-Bretanha para potência mandatária sem ter consultado os palestinos, o Supremo Conselho Aliado não respeitou a regra fixada pelo Pacto da Liga das Nações, segundo a qual os desejos das comunidades submetidas a esse tipo de Mandato deviam ser uma consideração principal na escolha da potência mandatária (art. 22).

sábado, 24 de julho de 2010

Palestina - meados do Século XIX - Começo do Sionismo




Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



O judaísmo conserva a esperança de que um dia todo o povo judaico disperso "regressará" ao que chama "a Terra/País de Israel", onde se reunirá e viverá como nação, observando rigorosa e integralmente a Lei divina. A nação judaica será assim "inteiramente liberta da servidão" das outras nações. A "redenção de Israel" transbordará, estendendo-se a todos os seres humanos e ao mundo inteiro. Tudo isso será obra de Deus, não do povo. Com efeito, a tradição religiosa vê na dispersão (diáspora) ou no exílio (termo mais corrente, embora historicamente inadequado) o castigo divino pelos pecados do povo, ao qual por conseguinte só o próprio Deus pode pôr fim. Durante muitos séculos a utopia da "redenção de Israel" não transbordou do âmbito religioso, que é a sua matriz. Deu origem a peregrinações e a imigrações individuais ou de pequenos grupos que não modificaram o estatuto político da Palestina nem a sua composição étnica, a qual, apesar das numerosas mudanças políticas e religioso-culturais, parece ter permanecido relativamente estável desde fins do II milênio a. C. até fins do II milênio da era cristã.

A situação começou a mudar no século XIX. No contexto do triunfo das ideologias nacionalistas e da idéia do estado nacional, surgiu entre os judeus laicos da Europa central e oriental um movimento nacionalista secular cujo objetivo era a criação de um estado dos judeus, sendo este considerado como o único meio de assegurar a identidade e a sobrevivência da nação judaica, assim como de lhe garantir um lugar ao sol entre as demais nações. Para os seus partidários, o dito estado tomou de certo modo, sob uma forma secularizada, o lugar que a utopia da "redenção de Israel" ocupa na tradição religiosa. Contrariamente à reunião de "Israel" da utopia religiosa, o estado projetado pelos nacionalistas judeus não tinha necessariamente a Palestina por cenário. Com efeito, o seu principal promotor, Teodoro Herzl (Benjamin Ze'ev, 1860-1904)(1), encarou a possibilidade de o criar na Argentina. Falou-se também de Chipre, da África oriental e do Congo. Diga-se de passagem que a liberdade na escolha do futuro "território nacional" de que deram mostras os nacionalistas judaicos se explica pelo fato de se viver então na Europa no apogeu do sonho colonialista. Consideravam-se colonizáveis todos os territórios situados fora da Europa. Colonizá-los era tido por uma obra benemérita, pois era "civilizá-los".

Os nacionalistas judaicos não tardaram a optar pela Palestina. Essa escolha, embora não fosse necessária, era natural e particularmente mobilizadora, por causa da ligação do judaísmo à Palestina e da atração que ela exerce mesmo sobre muitos judeus que não são religiosos ou originários desse país. O nacionalismo judaico tomou assim o nome de sionismo, palavra que deriva de Sião, um dos nomes de Jerusalém na Bíblia. Repare-se também que a escolha da Palestina se enquadrava nos projetos coloniais das potências européias, sobretudo da Grã-Bretanha e da França, que preparavam a partilha dos despojos do império otomano decadente. Foi sem dúvida por isso que o projeto sionista vingou.

Durante décadas o sionismo foi um movimento de intelectuais askenazes(2) laicos, sem base popular. Houve componentes do judaísmo, nomeadamente as grandes comunidades sefarditas(3) da África do norte, que estiveram praticamente à margem desse movimento até à década de 1930 ou ainda mais tarde. No entanto, o sionismo acabou por provocar profundas divisões nas diferentes componentes do judaísmo, religioso e secular, askenaze, sefardita e pertencente a outros grupos. Embora se tenham atenuado ou transformado, essas divisões subsistem ainda hoje.

Para a maioria esmagadora dos rabinos da Europa central e oriental que se encontraram confrontados com ele, o projeto dos sionistas de criar o estado dos judeus, apoiando-se para isso nos seus próprios meios políticos, diplomáticos e econômicos, era a negação da esperança na "redenção de Israel" por iniciativa e obra exclusivas de Deus. Por isso, condenaram o sionismo como uma manifestação de orgulho, o pecado por excelência. O partido Agudat Israel (União/Associação de Israel) fundado em Kattowitz (Silésia, Polônia) em 1912, Encarnou essa posição. O dito partido propunha-se reunir todos os judeus fiéis à Lei para se oporem ao nacionalismo sionista considerado como uma ameaça mortal para o "autêntico judaísmo". No entanto, na década de 1930, o Agudat Israel mitigou, por pragmatismo, a sua oposição ao sionismo, aceitando que a Palestina se tornasse o refúgio para os judeus europeus perseguidos. Em 1948 reconheceu de fato as instituições do Estado de Israel. Participou em todas as eleições legislativas israelitas6 e em vários governos. No entanto, algumas facções minoritárias não aceitaram a mudança de orientação. Além de persistirem na negação da legitimidade religiosa do Estado de Israel e na recusa de qualquer colaboração com ele, tornaram-se críticos acérrimos da sua política. Entre os pequenos grupos representantes dessa tendência, o dos Neturei Karta (Guardiães da Cidade) é atualmente o mais conhecido.

Uma minoria entre os judeus religiosos da Europa central e oriental aceitou bastante cedo colaborar com os sionistas. Um dos primeiros expoentes desta posição foi o rabino Isaac Jacob Reines (1839-1915), nascido em Karolin, na Bielorússia. Na origem, essa posição tinha sobretudo por objetivo não deixar aos seculares o monopólio do socorro prestado aos judeus pobres e perseguidos. Encarnou-a o Mizrahi (Centro Espiritual) fundado em Vilnius (Lituânia) em 1902. Segundo essa corrente do judaísmo religioso, nada impede a colaboração com o sionismo, pois este não é incompatível com a tradição. A razão que ela dá funda-se, paradoxalmente, no caráter inteiramente materialista e político do sionismo. Dado o seu teor, o sionismo não pode fazer concorrência à esperança messiânica, que se situa num plano completamente diferente. A idéia da coexistência pacífica do judaísmo religioso e do sionismo depressa cedeu o lugar a uma integração da ideologia sionista dentro do sistema religioso tradicional. O autor dessa integração foi o rabino Abraão Isaac Hacohen Kook (1865-1935) nascido em Griva na Letônia, primeiro Rabino-Mor askenaze da Palestina (1921-1935). Contrariamente aos seus homólogos do Agudat Israel, o rabino Kook vê no sionismo um instrumento de que Deus se serve para dar início à "redenção de Israel", e no Estado dos judeus a aurora da redenção ou do reino de Deus. Os principais herdeiros atuais desta concepção do sionismo são o Partido Nacional Religioso e o Guch Emunim (Bloco da Fé), que reúne os opositores mais irredutíveis à devolução de qualquer parcela da Cisjordânia e da Faixa de Gaza conquistadas por Israel em 1967, assim como os colonizadores mais zelosos desses territórios.

O sionismo provocou também clivagens entre os judeus secularizados. Uns abraçaram-no com mais ou menos entusiasmo e agiram ou não em conformidade, outros serviram-se dele para diferentes fins, outros olharam-no com indiferença e outros ainda rejeitaram-no terminantemente, por razões políticas, morais, culturais ou sociais. Além dos anti-sionistas religiosos, os autênticos adversários do sionismo são ainda hoje judeus seculares, o que é natural, na medida em que a questão diz diretamente respeito a uns e a outros.

O sionismo tornou-se popular entre os judeus, sobretudo entre os judeus seculares, da Europa oriental e central a partir de 1881 por causa dos numerosos ataques e pilhagens (pogroms, em russo) de que aí foram vítimas entre esse ano e 1921. De fato, foi a Europa oriental que forneceu os contingentes de emigrantes judeus que então foram instalar-se na Palestina. As duas primeiras vagas da emigração coincidiram aliás com as duas primeiras vagas de pogroms, que tiveram lugar respectivamente em 1881-1884 e em 1903-1906. A esmagadora maioria dos emigrantes era gente pobre e perseguida. Dirigiam-na intelectuais das classes médias. Estes fizeram financiar a operação por membros da burguesia judaica ocidental, européia e norte-americana, ansiosa por desviar da sua porta uma imigração popular judaica que iria contrariar os seus desígnios de "assimilação" nos países respectivos.


Notas:

1 Nasceu em Budapeste, mas passou a maior parte da vida em Viena.


2 Askenaze qualificou primeiro o judaísmo da Alemanha com as suas tradições próprias, estendendo-se depois ao judaísmo de toda a Europa central e oriental. O termo designa de maneira genérica os judeus da Europa central e oriental ou de lá originários.


3 Sefardita no sentido próprio qualifica os judeus da península ibérica e os seus descendentes. Depois da sua expulsão, os judeus ibéricos dispersaram-se sobretudo nos países mediterrâneos, mas também nos Países Baixos, na Grã-Bretanha e, finalmente, nas Américas. Na linguagem corrente, a palavra sefardita aplica-se freqüentemente, de maneira inadequada, a todos os judeus não askenazes. Como a sua grande maioria vivia nos países mediterrâneos e nos países árabe-muçulmanos do Próximo e Médio Oriente (Iraque, Iêmen, Irã, etc.) os judeus não-askenazes também são muitas vezes chamados "judeus orientais".

Palestina - De fins do II milênio a.C. a meados do Século XIX



Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



Para melhor compreender a situação atual da Palestina, convém fazer um esboço da sua história a partir do II milênio a. C..

A Palestina esteve organizada em cidades-estado sob a hegemonia egípcia durante uma boa parte do II milênio a. C.. A situação mudou nos últimos séculos desse milênio. Chegaram então à Palestina sucessivas vagas de imigrantes ou invasores vindos do norte e do noroeste, das ilhas ou do outro lado do Mediterrâneo. Os historiadores costumam designá-los com a expressão "Povos do Mar". Esses povos parecem ter-se fixado sobretudo ao longo da costa. Os mais conhecidos entre eles são os Filisteus que se fixaram sobretudo no sudoeste (costa oeste do Neguev e Chefela). Aí fundaram vários pequenos reinos (Gaza, Asdod, Ascalão, Gat e Ekron). Paralelamente aos reinos filisteus, constituíram-se primeiro o reino de Israel no norte da Palestina e depois o reino de Judá, mais pequeno, na zona de baixas montanhas do sul. Durante a maior parte da sua existência, Israel teve como capital Samaria. Hebron foi a primeira capital de Judá, mas depressa cedeu o lugar a Jerusalém.

Entre os antigos povos da Palestina, os Filisteus foram talvez os que maior influência exerceram até aos últimos séculos da era pré-cristã. Com efeito, não deve ter sido por acaso que o seu nome foi dado a toda a região, a Palestina, isto é, o país dos Philisteus. Com o sentido que se tornou habitual, o nome já está documentado nas Histórias de Heródoto em meados do séc. V a. C. Apesar da sua importância na antiguidade, conhecem-se muito pouco os Filisteus e a história dos seus reinos. A razão óbvia dessa ignorância é a inexistência de uma biblioteca ou de bibliotecas filistéias comparáveis ao Antigo Testamento. Praticamente tudo o que se sabe ou se pensa saber sobre os Filisteus se baseia nos escritos bíblicos. Por conseguinte, a posteridade só conhece os Filisteus na medida em que eles estão em relação com Israel, com Judá, ou com os judeus. Além disso, são vistos através dos olhos daqueles que foram os seus concorrentes e, não raro, seus inimigos declarados. De fato, a posteridade, de maneira geral, não se interessa pelos Filisteus nem os estuda por si mesmos, mas só por causa da sua relação com a história bíblica. Tudo isso deformou a visão que se tem deles, do lugar que ocuparam e do papel que desempenharam, aparecendo os Filisteus como um elemento marginal na história da Palestina antiga. Esse erro de perspectiva influencia, sem dúvida alguma, a visão corrente que se tem da atual Palestina, da sua composição étnica e da sua situação política.

Os vários reinos palestinenses(1), filisteus e hebraicos, coexistiram durante séculos. Ora guerrearam entre si, ora se aliaram para sacudir o jugo de alguma grande potência do momento. A primeira vítima desse jogo foi Israel, conquistado e anexado pela Assíria em 722 a. C. Desde então até 1948 não houve nenhuma entidade política chamada Israel. Os reinos filisteus e o reino de Judá continuaram a existir sob a dependência da Assíria, a grande potência regional entre o séc. IX e fins do séc. VII a. C., cujo território nacional se situava no norte da Mesopotâmia, no atual Iraque.

No fim do séc. VII a. C., o Egito e a Babilônia, a outra grande potência mesopotâmica, com a sede no sul do Iraque atual, disputaram os despojos do Império Assírio. Tendo a Babilônia levado a melhor, a Palestina ficou-lhe submetida durante cerca de oito décadas. De um modo geral, as histórias, focadas como estão em Judá, falam só da conquista desse reino por Nabucodonosor, da deportação para a Babilônia de parte da sua população, da destruição de várias das suas cidades, nomeadamente de Jerusalém com o templo de Iavé (597 e 587 a. C.). Deve-se no entanto reparar que os reinos filisteus de Ascalão e de Ekron, conquistados por Nabucodonosor respectivamente em 804 e em 803, tiveram um destino semelhante.

Em 539 a. C. a Palestina passou com o resto do império babilônico para as mãos dos Persas Aquemênidas. Sabe-se que estes entregaram a administração do território de Judá, pelo menos de parte dele, a membros da comunidade judaica da Babilônia. Em 331 a Palestina foi conquistada pelo macedônio Alexandre Magno. Após a morte deste, ficou primeiro sob o domínio dos Lágidas ou Ptolomeus que tinham a capital em Alexandria, no Egito (320-220 a. C.). Depois passou para a posse dos Selêucidas sediados em Antioquia, na Síria (220-142 a. C.). Entre 142 e 63 a. C, os Asmoneus, uma dinastia judaica, com Jerusalém como capital, conseguiu não só libertar-se do poder selêucida, mas até impor o seu domínio praticamente em toda a Palestina, e também nos territórios filisteus. Nessa altura a grande maioria dos judeus já vivia fora da Palestina, encontrando-se dispersos em todo o Próximo Oriente. A dispersão deveu-se sobretudo à emigração e, numa medida muito menor, às deportações de 597 a 587. Os principais centros judaicos fora da Palestina eram então Alexandria e Babilônia. Profundamente helenizados, os judeus de Alexandria liam as suas Escrituras em grego, e a eles deve-se a coletânea de escritos que se tornará o Antigo Testamento cristão.

Em 63 a. C., a Palestina passou a fazer parte do Império Romano dentro do qual não teve sempre o mesmo estatuto. Por voltas de meados do séc. I da era cristã, os judeus da Palestina tentaram libertar-se do domínio romano. Houve primeiro várias sublevações locais. Em 66 a revolta generalizou-se. Em 70 os Romanos conquistaram Jerusalém e destruíram o templo judaico. Os judeus da Palestina voltaram a revoltar-se em 131. Após ter esmagado a revolta, em 135, o imperador Adriano fez de Jerusalém uma colônia romana, Colonia Aelia Capitolina, da qual os judeus estiveram excluídos durante algum tempo. Com a ruína do templo e o fim da autonomia judaica na Palestina desapareceu a maioria dos grupos político-religiosos nos quais o judaísmo, sobretudo o judaísmo palestinense, estava então dividido. Praticamente só ficaram em campo dois grupos: o farisaísmo e o cristianismo, recém-formado. Os dois grupos acabaram por separar-se e evoluíram de maneira independente, em concorrência e, não raro, em conflito. O farisaísmo deu origem ao judaísmo rabínico, isto é, o judaísmo atual.

Graças à cristianização do império romano, a Palestina, palco dos acontecimentos fundadores do cristianismo, adquiriu uma grande importância para o mundo cristão, sobretudo para os cristãos que se encontravam dentro do império romano. Por isso durante o período bizantino (324-638) a Palestina conheceu uma prosperidade e um crescimento demográfico notáveis. Durante esse período a esmagadora maioria da sua população tornou-se cristã. Em 614 os Persas Sassânidas invadiram a Palestina, onde causaram grandes estragos. Ocuparam-na até 628, ano em que os Bizantinos a reconquistaram, mas por pouco tempo.

Com efeito, dez anos mais tarde, em 638 toda a Palestina passou para o domínio arábico-muçulmano. Este exerceu-se através de uma sucessão de dinastias, de origens, de etnias e com capitais diferentes. A primeira dessas dinastias, a dos Omíadas (660-750), com a capital em Damasco, foi uma das que mais marcou a Palestina, nomeadamente com a construção do Haram ech-Cherife (o Nobre Santuário/Esplanada das Mesquitas) no lugar que ocupara outrora o templo judaico, tornando Jerusalém na terceira cidade santa do islamismo. Seguiram-se os Abássidas (750-974) e os Fatimidas (975-1071), com as capitais respectivamente em Bagdá e no Cairo. Entre 1072 e 1092 a Palestina esteve sob os Turcos Seldjúcidas, que então tinham a sede em Bagdá.

Embora não tenha dado origem a uma imigração popular e, por conseguinte, não tenha mudado a composição étnica e a demografia de maneira apreciável, o regime árabo-muçulmano teve como conseqüência a arabização e a islamização da Palestina. A arabização(2), nomeadamente da população cristã de língua aramaica, língua aparentada com o árabe, deu-se muito depressa. Não se pode dizer o mesmo da islamização. Apesar de o islamismo se apresentar como o acabamento da tradição bíblica, partilhada pelo cristianismo, pelo judaísmo e pelo samaritanismo, o processo de islamização da população palestinense (cristã, judaica e samaritana) parece ter sido muito lento. Em 985, após três séculos e meio de regime islâmico, o geógrafo árabe-muçulmano de Jerusalém, conhecido pelo nome de el-Maqdisi ("o jerosolimitano") lamenta-se de que os cristãos e os judeus são maioria na sua cidade natal. O que el-Maqdisi escreve a respeito da Jerusalém de fins do séc. X valia para o conjunto da Palestina e continuou provavelmente a valer durante cerca de mais dois séculos e meio.

Organizada com o intuito declarado de arrancar o túmulo de Cristo das mãos dos "infiéis", a primeira cruzada terminou, em 1099, com a conquista de Jerusalém e, no ano seguinte, a criação do Reino Latino de Jerusalém. Este manteve-se até 1187, tendo sido então conquistado pelo curdo Saladino, o fundador da dinastia ayúbida. Aos Ayúbidas seguiram-se os Mamelucos, primeiro turcos (1250-1382) e depois circassianos (1382-1516). Os Ayúbidas e os Mamelucos tiveram a capital no Cairo. Segundo a maioria dos especialistas da questão, foi durante o período mameluco que teve lugar a grande vaga da islamização popular da Palestina. Desde então até à segunda metade do séc. XX, os muçulmanos constituíram a esmagadora maioria da população. Do ponto de vista numérico, o segundo grupo era constituído pelos cristãos, seguidos, de muito longe, pelos grupos dos judeus e dos samaritanos. Em 1517 a Palestina passou para o poder dos Turcos Otomanos, cuja capital era Istambul.


Notas:

1 Usamos palestinense em relação com a Palestina antiga, palestino em relação com a Palestina moderna.


2 Adoção da língua árabe, da forma árabe dos nomes pessoais e da era da Hégira.

Palestina: resumo histórico - Introdução


Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



Palestina é o nome do território situado entre o Mediterrâneo a oeste, o rio Jordão e o Mar Morto a este, a chamada Escada de Tiro a norte (Ras en-Naqura/Roch ha-Niqra, fronteira com o Líbano) e o Wadi el-Ariche a sul (fronteira com o Sinai, tradicionalmente egípcio). Com 27.000 Km2, a Palestina é formada, de um modo geral, por uma planície costeira, uma faixa de colinas e uma cadeia de baixas montanhas cuja vertente oriental é mais ou menos desértica.

A Palestina foi habitada desde os tempos pré-históricos mais remotos. A sua história esteve geralmente ligada à história da Fenícia, da Síria e da Transjordânia, limítrofes. Talvez por causa da sua situação geográfica – faz parte do corredor entre a África e a Ásia e ao mesmo tempo fica às portas da Europa – a Palestina nunca foi sede de um poder que se estendesse para além das suas fronteiras. Pelo contrário, esteve quase sempre submetida a poderes estrangeiros, sediados na África, na Ásia ou na Europa. Em regra geral, foi só sob as potências estrangeiras que ela teve alguma unidade política.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Travesti na terceira margem do rio

Por Arnaldo Jabor


Não vou falar de guerra - danem-se os religiosos que destroem o mundo em nome de Alá e Jesus. Uma noite dessas, fui a Lapa, como meus amigos Miguel Faria Jr. e Ruy Solberg. Fomos ver a obra de finalização do Estrela da Lapa, o hiper-espaco, o cabaré pós-moderno, o já famoso nightclub mutante que Ruy vai inaugurar na mitológica esquina onde Noel Rosa flanava, onde porristas transcendentais faziam a música dos anos 30/40 - a esquina de Lavradio com Mem de Sá. A Lapa é um vivo museu de velhas casas deslumbrantes, botequins, bordéis, casas de pasto, fachadas meio barrocas meio neoclássicas que tinham de ser preservadas, em vez da sórdida filial oportunista do Guggenheim submarino que vai matar os baiacus da Praça Mauá.
Em frente da futura Estrela da Lapa, há um ponto de travestis iluminados.

Quando passamos, um deles gritou meu nome, veio correndo e me abraçou, dizendo que era meu fã, porque eu tinha escrito um artigo sobre as 'travecas', que ele, Luana Muniz, líder comunitário havia lido numa assembléia de sexo-mutantes com grande repercussão. Fiquei emocionado com os abraços por um texto que escrevi dez anos atrás, porque realmente acho fascinante a vida dos travestis. Por isso, volto a escrever sobre eles, reproduzindo também trechos do primeiro artigo.

Acho os travestis figuras shakespearianas, de grande dramaticidade, centauros urbanos, corajosos, encarnando duas vidas num corpo só. Os travestis almejam uma beleza superior, uma poesia qualquer insuspeitada, mesmo que movidos pela necessidade da grana do 'michê'. Não confundir o travesti com a drag-queen; a drag-queen é satírica, caricatura de uma impossibilidade; o travesti é idealista. O travesti acredita na arte; é utópico e romântico. O travesti tem orgulho de ser quem é; ele não é uma decaída - ele tenta ser uma afirmação de identidade. Na realidade, o travesti é uma espécie de ideal das mulheres, principalmente das pós-peruas, das turbinadas e siliconadas, pois elas querem ser homens também, homens macios, elas aspiram à coragem e liberdade do travesti, sem pagar o preço das ruas, pois o travesti sempre encerra um perigo qualquer.

Eles não têm a mansidão aparente das damas da noite. O travesti é um risco maior que a aids. Eles têm algo de homem-bomba - carregam um segredo que pode ter matar ou te mudar para sempre. O travesti não enfrenta a moral vigente; eles enfrentam a biologia. A garota de programa é conservadora, serve ao sistema sexual vigente. O travesti é revolucionário, quer mudar o mundo. O veado ama o homem; o travesti ama a mulher mas ele não quer ser mulher, ele quer muito mais, ele não se contenta com pouco, ele é barroco, maneirista (não existem travestis clássicos). Há algo de clone no travesti, algo de robô, pois eles nascem de dentro de si mesmos, eles são da ordem da invenção, da poesia. O travesti não quer ter uma identidade; ele almeja uma ambigüidade sempre deslizante, sempre cambiante, se parindo numa estirpe futura de neo-loucos. O que oferece o travesti ao homem que o procura?

Oferece-lhe a chance de ser a mulher de uma mulher, oferece-lhe um pênis dissimulado. O travesti que se opera perde sua maior riqueza: a ambigüidade.
Nada mais triste que o travesti castrado; não é mais homem nem mulher. Vira nada. Passa a existir só em sua fantasia. O travesti não é uma coisa simples e doce; há um lado 'criminal' no travesti. Ele não é veado. Ele tem coragem de ser duplo, coragem do ridículo, do terror no centro da madrugada. Tudo isso ele suporta pela grana, claro, mas também pela suprema glória no espaço místico da esquina do Hotel Hilton ou da Avenida Atlântica. A prostituta ajuda no tédio da vida conjugal; o travesti ameaça as famílias. Ele é útil politicamente, porque cria a duplicidade no mundo dos confiantes executivos, porque cria uma rachadura no mundo real de hoje. O travesti não é uma pobre mulher por quem você pode se apaixonar e viver feliz para sempre. O travesti é inquietante, porque você pode virar mulher dele. O homem que se casa com a prostituta é considerado um 'benfeitor' que humilha um pouco a mulher amada que salvou. O travesti nunca será grato a você; você é que terá de lhe agradecer. O travesti não dá uma boa esposa; você é que poderá virar uma boa esposa para ele: "Querida, já lavei sua minissaia de oncinha..." Você não tira um travesti da 'vida'; ele é que pode te tirar da tua. Ele tem tudo; ele é auto-suficiente. Ele é um casal; se você entrar, você é o terceiro e pode ser excluído. O travesti sabe tudo que um homem quer, pois, como seu desejo é masculino, ele conhece a mulher ideal. Só o homem pode ser a mulher ideal.

O travesti está numa missão impossível e sabe disso; ele sabe que ainda é um dos poucos redutos do sonho no mundo. Ele não é da área moral, ele é da área artística. O travesti não tem par. Quem é o par do travesti? A prostitutinha tem lá o seu amante, seu cafetão. E o travesti? Ele é só. O travesti nu em Copacabana desafia todos os pudores. Quem está nu ali na esquina, o homem ou a mulher nele? Ninguém está nu, pois ele viaja na identidade e se disfarça o tempo todo; por isso, pode ficar nu na rua - ele não é ninguém, ele não aspira a um 'eu' fechado, ele é um 'eu' contemporâneo, ele é descentrado, movente, ele é o 'sujeito' moderno. O travesti tem algo de caubói - e desperta a mesma admiração que um John Wayne de biquíni 'fio dental'. Porque você está na paz; ele está na guerra. Você passa no seu Audi e vê na terceira margem do rio, uma Marlene Dietrich de botas no meio dos faróis e lá se vai o pai-de-família perdido de loucura. Todos somos ingênuos e caretas vistos daquele ângulo, mas todos somos travestis: 'maus' vestidos de 'bons', idiotas vestidos de sábios, egoístas de generosos, bichas de machões. O travesti nos fascina porque assume a verdade de sua mentira.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

É preciso torna-se criança

Por Leandro Lança


Quando lidamos com crianças em situações que toda a energia e atividade delas podem gerar alguma ameaça, geralmente temos duas alternativas.
A primeira é vigiá-las o tempo todo, não desgrudar os olhos um segundo se quer de suas atividades perigosas ou não, pois, cientes de nossa vigilância constante e sob a suspeita de alguma punição, as crianças irão se “comportar”.

A segunda opção é colocá-las diante de alguma coisa que possa atrair e prender a atenção distraindo-os da realidade ao redor. Frente a TV, computadores, games e outros, a passividade tranqüilizadora aos pais é conseguida com mínimo esforço.
Em termos de sociedade, a alternativa número um foi sempre utilizada por regimes totalitários que usaram muito de sua força, recursos e criatividade para vigiar e punir. Por policiar as atividades publicas e privadas (perigosas ou não) este modelo esteve sempre associado à ausência de liberdade e em muitos momentos teve como conseqüência a revolta popular.

O capitalismo enquanto sistema assentado em pressupostos que valorizam a liberdade, optou pela segunda alternativa, mas com uma diferença boba e espetacular. Diferente dos pais, o capitalismo não dá aos seus a distração, ele a vende. Assim, além de conseguir a passividade necessária contra qualquer ameaça, o sistema lucra com isso e ainda gera a falsa sensação de liberdade que em regimes totalitários não existia e agora ele oferece. Em poucas palavras, é a esta realidade que o teórico Guy Debord (1931-1994) dá o nome de “sociedade do espetáculo”. Segundo o Filósofo Douglas Kellner:

Para Debord, o espetáculo é uma ferramenta de pacificação e despolitização, é uma “guerra do ópio permanente”, que estupidifica os agentes sociais e distrai-os da tarefa mais urgente da vida real. O conceito de Debord de espetáculo está intimamente relacionado aos conceitos de separação e passividade, pois em espetáculos consumidos passivamente o espectador é alienado de produzir ativamente a sua própria vida.


Se há características comuns no “ser criança”, sem dúvida, uma das mais perceptíveis e perturbadoras para os adultos é a extrema atividade manifestada pelos pequeninos; muitas vezes em oposição à ordem estabelecida pelos mais velhos. Por ser tão natural a extrema atividade, comportamento passivo e conformado fora das estratégias usadas com este fim, geralmente é sinal de algum problema com a saúde da criança.
Sendo assim, a conclusão óbvia e rasteira que consigo ter gira em torno de:

1 - A estratégia de distração usada pelo sistema vigente foi tão eficaz que hoje sustentamos nossa própria dominação.

2 – Estamos com alguma doença.

3 – Deixamos de ser criança.

Será que a exortação do Rabi de Nazaré quanto à necessidade de nos tornar como criança faz algum sentido aqui?

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Caixeiro-Viajante, a ilusão americana vista bem de perto


por Luiz Carlos Oliveira Jr

É ao longo dos anos 60 que o cinema direto americano aperfeiçoa seus métodos. Para os irmãos Maysles, especificamente, isso significa caminhar rumo ao que eles mesmos chamariam de primeiro longa-metragem de não-ficção do cinema, Caixeiro-Viajante – “porque ali finalmente é introduzido o drama”, Albert diz a João Moreira Salles na entrevista incluída nos extras do DVD. O documentário em formato feature film, para ser exibido em salas comerciais, nasce portanto quando é atravessado pelo drama, pela possibilidade de acompanhar uma narrativa que, embora não tenha suas raízes na ficção, solicita a emotividade do espectador.

Esse drama é acentuado pela montagem, sem dúvida, mas suas potencialidades se efetuam mesmo é no momento do registro: esse é o drama que mais interessa e mais surpreende no cinema dos Maysles. Algo como: no momento em que percebemos de uma vez por todas o sentimento de derrota do personagem, alguém fora-de-quadro senta ao piano e começa a tocar a música triste ideal. Uma pérola do acaso ajuda o cineasta a ilustrar o que, no fim das contas, aparece como a história de uma típica tragédia americana. Dessa união entre um drama muito íntimo, uma tragédia desenhada por rugas e expressões faciais descontentes (“tragédia anatômica”, no vocabulário de Epstein), e uma situação de crise que põe em xeque os grandes mitos americanos, surge uma nova dramaturgia, calcada na meia-distância, no cuidadoso exame de superfície, nos detalhes que o acaso oferece (às vezes de bandeja, às vezes de maneira a exigir bastante da atenção e da sensibilidade do cinegrafista), porém atingindo os efeitos adesivos dos esquemas identitários do cinema hollywoodiano. Os personagens são apresentados, as situações se sucedem sem uma ordenação óbvia e a partir de um certo momento o filme tem seu protagonista, seu ponto de virada, sua progressão dramática. O espectador, por conseguinte, entra no filme e se cola a Paul Brennan de forma não muito distinta de como se colaria ao protagonista de um filme de grande estúdio.

Caixeiro-Viajante mostra homens que batem de porta em porta para vender a Bíblia. Seja nos momentos da venda, seja quando os vendedores retornam ao quarto de hotel onde se hospedam, a postura dos Maysles é a mesma: deixar câmera e som ligados e buscar se neutralizar (diferente de se anular) no espaço. Pouco a pouco o filme foca Paul Brennan com mais atenção. Suas vendas vêm caindo, seu humor vai embora, suas piadas se tornam cada vez mais ácidas. Uma semelhante camuflagem do dispositivo permitia a Frederick Wiseman implodir o discurso institucional, ou seja, deixá-lo ruir a partir de elementos que saíam de dentro da própria instituição, editados de modo a produzir efeitos não raro cruéis – o último plano de High School vai muito por aí, por mais sensacional e assustador que seja. Em Caixeiro-Viajante, de uma hora para outra começamos a ver a implosão do modelo democrático americano, que mostra sua incompatibilidade com certas vontades individuais ao submergir na frustração de Paul. Onde o sonho americano gostaria que houvesse uma massa, homogênea, o filme revela um quadro heterogêneo, feito primeiro de indivíduos, depois de lares/famílias – e estes por vezes são incomunicáveis.

Esse tropismo pelo trágico no cinema dos Maysles deste período ganha um contorno não menos que sinistro no filme que fizeram em seguida. Os caixeiros-viajantes vendiam a Bíblia, e não é por acaso que um ano depois Gimme Shelter mostrará um apocalipse filmado com claros acentos bíblicos – basta pensar na procissão de espectadores-peregrinos atravessando o deserto californiano rumo à aparição dos ídolos, os Stones. A fatalidade da história é conhecida: na Califórnia do “paz e amor”, uma confusão entre a platéia e os hell’s angels que faziam a “segurança” do show em Altamont descambaria em morte. As câmeras estavam lá, posicionadas, formando uma rede, aguardando pelo que viesse a acontecer. Ao cabo desse exercício de espera e de atenção, o material que tinham era o suficiente para construir um verdadeiro monumento do cinema direto, o filme sobre o “fim de uma era”. Nos irmãos Maysles, e no cinema direto como um todo, há algo de uma estética da armadilha: a equipe fica lá, calada, à espera e à espreita, usando o zoom para não precisar chegar perto demais, evitando se mexer ou fazer barulho para não espantar a presa. Muitas falas de Albert na entrevista feita em fevereiro de 2006 me deram a impressão de que ele preparava mesmo uma espécie de armadilha. Na verdade, contudo, sua aproximação com os personagens de Caixeiro-Viajante – contradizendo a postura de um mero caçador – é profundamente afetiva, e seu método não antecipa os discursos, mas sim os desvenda ao longo de um filme-processo que se descobre filme-crise. Gimme Shelter também funciona assim: quem imaginava que o “Woodstock da costa oeste” seria a pá de cal da geração flower power? (E será que foi? Ou é o filme que, hoje, nos faz crer nisso?)

A entrevista feita por João Moreira Salles é bem interessante principalmente porque o entrevistador é não apenas um admirador confesso do cinema direto, mas também um realizador que tem em cineastas como Pennebaker, Wiseman, Robert Drew e os próprios Maysles suas maiores influências. É cativante a curiosidade com que ele tenta extrair o máximo de informações sobre o método-Maysles, sobre a técnica empregada e seu desdobramento ético-estético, sempre flertando com o ponto limítrofe em que a entrevista se tornaria “consulta” pessoal. Tão iluminadora quanto essa entrevista recente é a conversa de Albert e David com o apresentador de um programa de TV, gravada em 1968, na ocasião em que eles bancaram a estréia do filme do próprio bolso. Havia um entusiasmo grande com aquela estética nova – e sua comparação com o cinéma vérité é veementemente rechaçada pelos Maysles mais de uma vez ao longo do bate-papo. Completando os extras, vem o primeiro filme de Albert, curta-metragem documental mais à moda antiga, sobre a psiquiatria na Rússia. Em meio aos interesses científicos do documentário, um observador inquieto já se insinua. Na década seguinte, Caixeiro-Viajante já seria, em pleno sentido, uma arte de observar – com inquietação.

Em: Contracampo Revista de Cinema: www.contracampo.com.br


Filme: Caixeiro-Viajante (1968)
Direção: Albert e David Maysles, Charlotte Zwerin

Sinopse: O filme acompanha o cotidiano de quatro vendedores de Bíblia ao longo de dois meses. Batendo de porta em porta, na esperança de fazer as melhores vendas possíveis, os caixeiros-viajantes tentam dar o melhor de si. Puxando conversa, contando piada ou lançando bordões persuasivos, eles também deixam entrever seus problemas, expectativas e sonhos.

Baixar o filme: www.megaupload.com/?d=EOUS0SDR

segunda-feira, 12 de julho de 2010

Influenciado por Thomas Mann?

por Leandro Lança

Uma das frases que mais gosto é esta do famoso escritor Thomas Mann (1875-1955):

“Ninguém pode sofrer influência daquilo que lhe é estranho, que lhe é alheio”.

Quando a li pela primeira vez, fiquei tão feliz que a escrevi em algum lugar bem visível do meu quarto. Por algum motivo, ainda hoje sinto o que senti naquela época, um sentimento que a própria frase denuncia. A sensação de que aquilo que gostamos e nos impacta, de alguma maneira já estava em nós.

Bem no fundo, talvez em meu inconsciente, sempre desgostei e tive um pé atrás com afirmações do tipo: Cuidado para não ser influenciado por fulano. Beltrano foi influenciado por isto ou aquilo. A arte dele é influência total de sicrano,etc. Sempre me pareceu muito arbitrário e simplista esse poder devastador e irresistível atribuído ao ato de influenciar.

Dentro desta perspectiva de influência, de um lado se têm um sujeito ativo detentor de alguma habilidade ou conhecimento, e do outro, um sujeito totalmente passivo que, após o contato, passa a ser controlado e dominado por algo que antes lhe era completamente estranho. Essa passividade completa do individuo dominado ou influenciado é bem duvidosa, e em outras situações já foi brilhantemente desmentida. Mas talvez, o ponto que mais me incomoda na idéia de influência é que ela parece sugerir um sujeito de mente virgem, intocada, em branco. Quando a influência chega, só há espaço para aquela nova idéia, e é como se não houvesse nenhuma relação com outras idéias pré-existentes.

É neste ponto que Thomas Mann me parece revelador. A frase sugere que aquilo que nos é estranho de antemão, não é capaz de nos impactar de forma positiva. A reação natural ao ser humano em relação ao estranho é de repulsa, medo, estranheza, incompreensão. Ao passo que aquilo que nos cativa, de modo nenhum nos era estranho, já estava em nós, por isso a identificação. Estava em nós de algum modo que não conseguimos conceber muito bem na maioria das vezes, mas já estava, e foi apenas atirado a nós.

A verdade é que, neste processo, o acusado de “influenciador” não faz mais do que apertar o gatilho de uma arma que já se encontra em posse da vítima. Mais ainda, o gatilho é apertado em conjunto, em uma ação que só pode ser dialógica.

Será que fui “influenciado” por Thomas Mann?

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Clarice Lispector perdoando Deus

Por: Clarice Lispector

Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas.

Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho.

O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva.

Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte.

Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo.

Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.



Perdoando Deus, In: "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998

terça-feira, 6 de julho de 2010

Cineclubes, ou o dia em que quis ser católico

Por Leandro Lança

A finalidade comum de um cineclube é a divulgação, a pesquisa e o debate do cinema. Recentemente, lendo uma dissertação acadêmica sobre cinema e religião, descobri informações interessantes. Por exemplo: O primeiro cineclube brasileiro foi fundado em 1928 no Rio de Janeiro e se chamava Chaplin Club. Nos anos 40 surgiu o Clube de Cinema de São Paulo, que foi o embrião para a Cinemateca Brasileira. Já nos anos 50, surge um forte movimento católico, eu disse católico, que estimulava a cultura cinematográfica e a fundação de cineclubes.

A preocupação do Vaticano com o que representava o cinema em sua época de ouro, já havia sido causa até de duas Encíclicas: A Vigilanti Cura pelo Papa Pio XI em 1936 e a Miranda Prorsus, escrita pelo Papa Pio XII, publicada em 1957. Nestas, havia as diretrizes a serem tomadas pelos católicos acerca do cinema, bem como a instituição da classificação moral dos filmes.

Segundo a autora Paula Regina Puhl:

Essa repercussão chega ao Brasil em 1952 por intermédio de uma missão do OCIC (Office Catolique International du Cinéma), chamada no Brasil de Organização Católica Internacional do Cinema e do Audiovisual e que tinha como finalidade a promoção de cursos e seminários que estimulassem a formação de cineclubes ligados a Igreja. Para reforçar e sistematizar as orientações católicas, em 1953 a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) criou o Centro de Orientação Cinematográfica, destinado à formação de espectadores.
Através de cursos, seminários, palestras, jornais e muitos encontros, os cineclubes católicos ganharam muita notoriedade nacional. A estimativa é que se chegou a 100
o número de cineclubes pelo comando da Ação Católica no Brasil.

Por um lado, a iniciativa católica tinha como pretensão ser uma peneira cristã da sétima arte, o que me parece um ingênuo equívoco. Os filmes eram analisados e indicados não só por sua importância cinematográfica, mas por serem ou não compatíveis com “os bons costumes”. Por outro lado, tinha-se o objetivo de formar um público atento e conhecedor da linguagem cinematográfica, bem como da cinematografia de outros países com pouca circulação comercial. A igreja oferecia cursos onde as pessoas podiam aprender sobre montagem, fotografia, roteiro, e outras partes técnicas que constituem um filme. Se havia uma preocupação moral excessiva, havia também uma preocupação estética importante.

É impossível não pensar na relevância destes cineclubes, (a despeito da motivação cristã medieval) quando penso que eu, mesmo tendo nascido em uma época de maior acesso a informação e cultura por vários meios, não recebi incentivo ou educação cinematográfica alguma. Sendo cristão, nem em meus delírios mais surreais poderia imaginar a possibilidade de um cineclube preocupado com estética ser incentivado pela igreja.

Esta semana tive duas experiências bem ilustrativas. Primeiro, chegou às minhas mãos a última edição do jornal da igreja batista onde cresci e freqüentei até os 17 anos (onde nunca ouvi nada positivo sobre cinema ou qualquer outra arte).

Uma das matérias era: “O perigo da Pokemonmania, inofencivo ou diabólico? Rev. Regina Pinto Moura fala sobre mais esse assunto polêmico”.
Ao longo do texto muito informativo, vemos opiniões como: “Os pokémons, que são divididos em 15 espécies, simbolizam demônios territoriais e neste desenho ingênuo para crianças eles vêm disfarçados ”(...) “Satanás deseja treinar crianças para comandar demônios, treinadores para atividades malignas, isto é muito sério”.

A pastora, que também se diz psicóloga, finaliza dizendo: “Enquanto cristãos e raça eleita, nosso dever é nos afastar de toda a influência das modernas invenções babilônicas que viciam e corrompem os bons costumes”.

A outra experiência que tive oportunidade de vivenciar foi a preocupação do meu pai (Pastor batista) acerca da série de filmes vampirescos, Crepúsculo, Lua Nova, Eclipse. Segundo ele, (que não assistiu aos filmes) temos de estar muito bem informados, pois se trata de filmes satânicos.

Vindo deste contexto de completa ignorância e desprezo pelo cinema, que é a regra geral entre igrejas evangélicas, salvo raríssimas exceções, fica fácil entender minha grata surpresa com a história dos cineclubes católicos.
Em muitos momentos, já tive a vontade de ter nascido em épocas passadas.
Depois desse papo, por um instante desejei ter nascido católico também.



Referências:

PUHL, Paula Regina, Uma bênção apostólica? Cinema e religião na construção das identidades em Novo Hamburgo; in: Vol. 23, No 37 (2009): Estudos de Religião - dezembro 2009

Jornal Shalom News, Ano 3 – n°14 Edição Mar/Abr 2010. Pg.8

sábado, 3 de julho de 2010

Futebol, a guerra dos civilizados

Por Leandro Lança

De acordo com as ciências sociais, as competições esportivas na idade moderna têm como uma de suas funções, substituir as guerras e outras manifestações de violência naturais ao ser humano e que em outras épocas faziam parte do dia-a-dia das populações. Através de um longo processo civilizatório, muito bem descrito pelo sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990) em “O processo civilizador”, podemos observar como nossa sociedade conseguiu reprimir em alguns casos, instintos naturais do ser humano, e em outros apenas mudar o modo de dar vazão a estes instintos.

Para nós brasileiros e talvez para o resto do mundo, não é difícil pensar a Copa do Mundo de Futebol como uma guerra pré-estabelecida. Nesta edição particularmente, a publicidade tem enfocado bastante o caráter “bélico” da competição com diversas propagandas que enaltecem os jogadores como verdadeiros “guerreiros”.

Em se tratando de guerra, não posso deixar de pensar em outro sociólogo: Florestan Fernandes (1920-1995). Em sua tese de doutorado sobre a função social da guerra na sociedade Tupinambá, Florestan trouxe a luz questões interessantes. Os Tupinambás, como outras nações indígenas, viviam em guerras tribais ininterruptas, e que não possuíam o caráter comum aos europeus, de extermínio e apropriação territorial. Ao estudar a guerra entre os Tupinambás, Florestan chegou à conclusão de que a guerra entre estes povos possui características positivas que nós brancos não conseguimos conceber. A existência de um inimigo comum, por exemplo, é muito importante para a construção da identidade Tupinambá, além disso, as batalhas constantes exercem enorme coesão interna nessa sociedade. Diversos rituais estão envolvidos em um confronto que visa muitas vezes à morte de um indivíduo apenas do grupo inimigo. Neste contexto, o interesse nunca é a destruição em massa do inimigo, mas a luta constante que agrega e dá sentido.

Voltando ao futebol, creio que o sentimento comum de tristeza que assola os brasileiros em uma desclassificação no mundial, não se refere simplesmente a derrota para a Holanda. O que causa uma tristeza maior é o vazio causado pelo desmantelamento de uma coesão social da qual experimentamos apenas de quatro em quatro anos. Diferente dos nativos desta terra Brasil, somos “guerreiros” por ocasião de um evento que dura pouco e demora a ocorrer.

O triste não é o 2 X 1 de virada, mas saber que a partir de hoje já não somos “180 milhões em ação”. Triste é saber que nas ruas, nos bairros, nos clubes, nas cidades, no país, já não teremos o sentimento de comunidade, o sentimento de Um. Não nos reuniremos para comer e assistir aos jogos juntos, já não haverá um assunto comum capaz de unir ricos e pobres, crianças e adultos, homens e mulheres, em torno da mesma causa.

O desejo reprimido de todo brasileiro neste 2 de julho é que a guerra não terminasse hoje, que tivéssemos a oportunidade de vingança o quanto antes, e a coesão grupal voltasse a normalidade. Em tempos de globalização e crescente individualização parece difícil vivenciar vislumbres de socialização impunemente, sem aquela pontada de nostalgia. O problema é que não somos “selvagens”. Civilizamos nossas disputas, e como bons civilizados, só nos restam esperar longos quatro anos para mais alguns dias ou semanas em verde-amarelo.