quinta-feira, 15 de julho de 2010

Caixeiro-Viajante, a ilusão americana vista bem de perto


por Luiz Carlos Oliveira Jr

É ao longo dos anos 60 que o cinema direto americano aperfeiçoa seus métodos. Para os irmãos Maysles, especificamente, isso significa caminhar rumo ao que eles mesmos chamariam de primeiro longa-metragem de não-ficção do cinema, Caixeiro-Viajante – “porque ali finalmente é introduzido o drama”, Albert diz a João Moreira Salles na entrevista incluída nos extras do DVD. O documentário em formato feature film, para ser exibido em salas comerciais, nasce portanto quando é atravessado pelo drama, pela possibilidade de acompanhar uma narrativa que, embora não tenha suas raízes na ficção, solicita a emotividade do espectador.

Esse drama é acentuado pela montagem, sem dúvida, mas suas potencialidades se efetuam mesmo é no momento do registro: esse é o drama que mais interessa e mais surpreende no cinema dos Maysles. Algo como: no momento em que percebemos de uma vez por todas o sentimento de derrota do personagem, alguém fora-de-quadro senta ao piano e começa a tocar a música triste ideal. Uma pérola do acaso ajuda o cineasta a ilustrar o que, no fim das contas, aparece como a história de uma típica tragédia americana. Dessa união entre um drama muito íntimo, uma tragédia desenhada por rugas e expressões faciais descontentes (“tragédia anatômica”, no vocabulário de Epstein), e uma situação de crise que põe em xeque os grandes mitos americanos, surge uma nova dramaturgia, calcada na meia-distância, no cuidadoso exame de superfície, nos detalhes que o acaso oferece (às vezes de bandeja, às vezes de maneira a exigir bastante da atenção e da sensibilidade do cinegrafista), porém atingindo os efeitos adesivos dos esquemas identitários do cinema hollywoodiano. Os personagens são apresentados, as situações se sucedem sem uma ordenação óbvia e a partir de um certo momento o filme tem seu protagonista, seu ponto de virada, sua progressão dramática. O espectador, por conseguinte, entra no filme e se cola a Paul Brennan de forma não muito distinta de como se colaria ao protagonista de um filme de grande estúdio.

Caixeiro-Viajante mostra homens que batem de porta em porta para vender a Bíblia. Seja nos momentos da venda, seja quando os vendedores retornam ao quarto de hotel onde se hospedam, a postura dos Maysles é a mesma: deixar câmera e som ligados e buscar se neutralizar (diferente de se anular) no espaço. Pouco a pouco o filme foca Paul Brennan com mais atenção. Suas vendas vêm caindo, seu humor vai embora, suas piadas se tornam cada vez mais ácidas. Uma semelhante camuflagem do dispositivo permitia a Frederick Wiseman implodir o discurso institucional, ou seja, deixá-lo ruir a partir de elementos que saíam de dentro da própria instituição, editados de modo a produzir efeitos não raro cruéis – o último plano de High School vai muito por aí, por mais sensacional e assustador que seja. Em Caixeiro-Viajante, de uma hora para outra começamos a ver a implosão do modelo democrático americano, que mostra sua incompatibilidade com certas vontades individuais ao submergir na frustração de Paul. Onde o sonho americano gostaria que houvesse uma massa, homogênea, o filme revela um quadro heterogêneo, feito primeiro de indivíduos, depois de lares/famílias – e estes por vezes são incomunicáveis.

Esse tropismo pelo trágico no cinema dos Maysles deste período ganha um contorno não menos que sinistro no filme que fizeram em seguida. Os caixeiros-viajantes vendiam a Bíblia, e não é por acaso que um ano depois Gimme Shelter mostrará um apocalipse filmado com claros acentos bíblicos – basta pensar na procissão de espectadores-peregrinos atravessando o deserto californiano rumo à aparição dos ídolos, os Stones. A fatalidade da história é conhecida: na Califórnia do “paz e amor”, uma confusão entre a platéia e os hell’s angels que faziam a “segurança” do show em Altamont descambaria em morte. As câmeras estavam lá, posicionadas, formando uma rede, aguardando pelo que viesse a acontecer. Ao cabo desse exercício de espera e de atenção, o material que tinham era o suficiente para construir um verdadeiro monumento do cinema direto, o filme sobre o “fim de uma era”. Nos irmãos Maysles, e no cinema direto como um todo, há algo de uma estética da armadilha: a equipe fica lá, calada, à espera e à espreita, usando o zoom para não precisar chegar perto demais, evitando se mexer ou fazer barulho para não espantar a presa. Muitas falas de Albert na entrevista feita em fevereiro de 2006 me deram a impressão de que ele preparava mesmo uma espécie de armadilha. Na verdade, contudo, sua aproximação com os personagens de Caixeiro-Viajante – contradizendo a postura de um mero caçador – é profundamente afetiva, e seu método não antecipa os discursos, mas sim os desvenda ao longo de um filme-processo que se descobre filme-crise. Gimme Shelter também funciona assim: quem imaginava que o “Woodstock da costa oeste” seria a pá de cal da geração flower power? (E será que foi? Ou é o filme que, hoje, nos faz crer nisso?)

A entrevista feita por João Moreira Salles é bem interessante principalmente porque o entrevistador é não apenas um admirador confesso do cinema direto, mas também um realizador que tem em cineastas como Pennebaker, Wiseman, Robert Drew e os próprios Maysles suas maiores influências. É cativante a curiosidade com que ele tenta extrair o máximo de informações sobre o método-Maysles, sobre a técnica empregada e seu desdobramento ético-estético, sempre flertando com o ponto limítrofe em que a entrevista se tornaria “consulta” pessoal. Tão iluminadora quanto essa entrevista recente é a conversa de Albert e David com o apresentador de um programa de TV, gravada em 1968, na ocasião em que eles bancaram a estréia do filme do próprio bolso. Havia um entusiasmo grande com aquela estética nova – e sua comparação com o cinéma vérité é veementemente rechaçada pelos Maysles mais de uma vez ao longo do bate-papo. Completando os extras, vem o primeiro filme de Albert, curta-metragem documental mais à moda antiga, sobre a psiquiatria na Rússia. Em meio aos interesses científicos do documentário, um observador inquieto já se insinua. Na década seguinte, Caixeiro-Viajante já seria, em pleno sentido, uma arte de observar – com inquietação.

Em: Contracampo Revista de Cinema: www.contracampo.com.br


Filme: Caixeiro-Viajante (1968)
Direção: Albert e David Maysles, Charlotte Zwerin

Sinopse: O filme acompanha o cotidiano de quatro vendedores de Bíblia ao longo de dois meses. Batendo de porta em porta, na esperança de fazer as melhores vendas possíveis, os caixeiros-viajantes tentam dar o melhor de si. Puxando conversa, contando piada ou lançando bordões persuasivos, eles também deixam entrever seus problemas, expectativas e sonhos.

Baixar o filme: www.megaupload.com/?d=EOUS0SDR

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