segunda-feira, 26 de julho de 2010

A Primeira Guerra Mundial e a Palestina

Comissão Justiça e Paz
CNIR/FNIRF Portugal,2002



A Primeira Guerra Mundial teve conseqüências decisivas para a Palestina. As potências aliadas não esperaram pelo fim da guerra para preparar o desmantelamento e a liquidação do império turco, aliado da Alemanha. Procurando aproveitar-se do nacionalismo árabe, a Grã-Bretanha prometeu ao cherife Hussein de Meca o seu apoio para a criação de um estado árabe independente tendo por fronteira ocidental o mar Vermelho e o Mediterrâneo, em troca da revolta árabe contra a Turquia. De fato, a Palestina, que faz parte do território do anunciado estado árabe, era cobiçada ao mesmo tempo pela Grã-Bretanha e pela França, mas as duas potências admitiram o princípio da sua internacionalização nos acordos secretos de Sykes-Picot de 16 de Maio de 1916. Esse fato não impediu a Grã-Bretanha de prometer no ano seguinte, na chamada Declaração Balfour, à Federação Sionista que faria todo o possível para o estabelecimento de "um lar nacional para o povo judaico" (a national home for the Jewish people) na Palestina. Para os sionistas, o circunlóquio "um lar nacional para o povo judaico" designava um estado judaico ou um estado dos judeus. O movimento sionista evitava o termo "estado", falando antes de "lar nacional" ou de "pátria", para não exacerbar a oposição turca ao projeto.

De fato, as forças britânicas, às quais se renderam as forças turcas em Jerusalém a 9 de Dezembro de 1917, terminaram a ocupação da Palestina em Setembro de 1918. A Palestina ficou então sob administração militar britânica, a qual foi substituída por uma administração civil a 1º de Julho de 1920. Entretanto, na Conferência da Paz reunida em Paris, em Janeiro de 1919, as Potências Aliadas decidiram que os territórios da Síria, do Líbano, da Palestina/Transjordânia e da Mesopotâmia não seriam devolvidos à Turquia, mas passariam a formar entidades distintas, administradas segundo o sistema dos Mandatos. Criado pelo artigo 22 do Pacto da Liga das Nações a 28 de Junho de 1919, o sistema dos Mandatos destinava-se a determinar o estatuto das colônias e dos territórios que se encontravam sob o domínio das nações vencidas. O dito documento declara que "algumas comunidades outrora pertencentes ao Império Turco atingiram um estado de desenvolvimento" que permite reconhecê-las provisoriamente como nações independentes. Em relação a essas nações, o papel das potências mandatárias seria ajudá-las a instalar a sua administração nacional independente. O mesmo documento estipula ainda que os desejos dessas nações devem ser uma consideração principal (a principal consideration) na escolha da potência mandatária. Na conferência de San Remo a 25 de Abril de 1920, o Conselho Supremo Aliado repartiu os Mandatos para essas nações entre a França (Líbano e Síria) e a Grã-Bretanha (Mesopotâmia, Palestina/Transjordânia). O Mandato para a Palestina, que incorpora a Declaração Balfour sobre o estabelecimento do "lar nacional para o povo judaico", foi aprovado pelo Conselho da Liga das Nações a 24 de Julho de 1922, tornando-se efetivo a 29 de Setembro do mesmo ano. Ao abrigo do disposto no art. 25 do Mandato para a Palestina, o Conselho da Liga das Nações decidiu a 16 de Setembro de 1922 excluir a Transjordânia de todas as cláusulas relativas ao lar nacional judaico, e dotá-la com uma administração própria. De fato, o território que os sionistas pretendiam para nele estabelecer o seu estado era bastante mais vasto do que a Palestina. Abarcava também toda a parte oeste da Transjordânia, o planalto do Golã e a parte do Líbano a sul de Sidão.

Como previsto
, todas essas nações se tornaram efetivamente independentes no curso das três décadas seguintes: O Iraque (Mesopotâmia) a 3 de Outubro de 1932; o Líbano, a 22 de Novembro de 1943; a Síria, a 1º de Janeiro de 1944 e, finalmente, a Transjordânia, a 22 de Março de 1946. A única exceção foi a Palestina.

O obstáculo que fez descarrilar o processo da independência da Palestina foi a adoção pela Liga das Nações, seguindo nisso as pegadas da Grã-Bretanha, do projeto sionista da criação do "lar nacional para o povo judaico" nesse país.

A Organização Sionista Mundial tinha entretanto amadurecido esse projeto e tinha-lhe granjeado apoios muito sólidos, vindo-lhe o principal da Grã-Bretanha. Esta expressou o seu patrocínio ao projeto sionista na já referida Declaração Balfour. Trata-se de uma carta que A. J. Balfour, Ministro dos Negócios Estrangeiros, escreveu, a 2 de Novembro de 1917, ao Lorde L. W. Rothschild, representante dos judeus britânicos, e, por seu intermédio, à Federação Sionista. Numa altura em que a Palestina ainda era oficialmente território turco, o Governo de Sua Majestade Britânica declara à Federação Sionista ver com bons olhos o estabelecimento de "um lar nacional para o povo judaico" nesse país e compromete-se a fazer todo o possível para facilitar a realização desse projeto. A carta acrescenta uma ressalva segundo a qual "nada deverá ser feito que prejudique os direitos cívicos e religiosos das comunidades não-judias que existem na Palestina". As ditas "comunidades não-judias" constituíam então mais de 90 % da população. De fato, em 1918, a Palestina tinha 700.000 habitantes: 644.000 árabes (574.000 muçulmanos e 70.000 cristãos) e 56.000 judeus.

A Declaração Balfour era um compromisso que a Grã-Bretanha assumia, por razões que lhe eram próprias, para com a Federação Sionista. Mas entretanto ela recebeu o aval das Principais Potências Aliadas e foi incorporada no Mandato para a Palestina, aprovado pela Liga das Nações a 24 de Julho de 1922. Com efeito, o essencial da Declaração Balfour é citado explicitamente no § 2 do preâmbulo do dito documento. É ainda reforçado no § 3, graças a dois elementos que não constavam na Declaração Balfour, isto é, a menção da ligação histórica do povo judaico com a Palestina e a idéia da reconstituição do seu lar nacional nesse país. Dos vinte e oito artigos do texto do Mandato seis têm por objeto o estabelecimento do lar nacional judaico ou medidas com ele relacionadas. O art. 2, que é o primeiro de caráter programático, começa assim: "A (Potência) Mandatária terá a responsabilidade de pôr o país em condições políticas, administrativas e econômicas que assegurem/garantam o estabelecimento do lar nacional judaico (of the Jewish national home), como está estipulado no preâmbulo...". Outros cinco artigos tratam de medidas destinadas a realizar esse programa. Essas medidas dizem respeito: ao papel de conselheira de uma "Agência Judaica apropriada" nos diferentes domínios de governo (art. 4); às facilidades que devem ser concedidas aos judeus nas questões relativas à imigração, assim como no que respeita à sua instalação no país, inclusive nas terras do Estado ou nos baldios (art. 6); às facilidades que devem ser concedidas aos judeus na obtenção da nacionalidade (art. 7); à concessão de obras e serviços públicos à Agência Judaica (art. 11b); à imposição do hebraico como língua oficial ao lado do inglês e do árabe (art. 22), embora os judeus fossem então só um pouco mais de 11 % da população. A Palestina tinha nessa altura 757.182 habitantes, dos quais 83.794 eram judeus.

Sem excluir formalmente o objetivo normal do tipo de Mandato aplicado aos países árabes do império otomano, que era levar à plena independência a população que então os habitava, o Mandato para a Palestina tinha outro objetivo, que lhe era próprio, isto é, promover a criação de um lar nacional judaico – subentenda-se a criação de um estado judaico – com gente que, na sua maioria esmagadora, estava ainda espalhada pelo mundo e, por conseguinte, deveria ser trazida de fora. O seu documento fundante não deixa dúvidas de que o objetivo prioritário do Mandato para a Palestina – para não dizer o seu verdadeiro objetivo – era criar o lar nacional judaico. É verdade que o documento também menciona as comunidades não-judaicas então existentes na Palestina e os seus direitos cívicos e religiosos – não refere os seus direitos políticos – mas as suas menções vêm em segundo lugar e expressam-se sob a forma de ressalvas feitas às medidas destinadas a implementar o projeto sionista.

Graças ao Mandato para a Palestina, o patrocínio do projeto sionista, que era um elemento da política britânica, tornou-se política oficial da Liga das Nações. Esta não só deu ao projeto sionista a caução internacional mas forneceu-lhe também os meios para a sua realização. A Grã-Bretanha, a quem o Conselho Supremo Aliado (isto é, os vencedores da guerra) confiara o Mandato da Palestina, era sem dúvida alguma a potência mais indicada para implantar a política da Liga das Nações em relação a esse país. De fato, a administração britânica procurou cumprir fielmente enquanto pôde a missão que lhe fora confiada.

Por seu lado, as organizações sionistas aproveitaram as infra-estruturas administrativas e econômicas que o Mandato pôs à sua disposição para acelerar a realização do projeto de criação do Estado judaico na Palestina. Para isso intensificaram a imigração dos judeus da Europa oriental e central, em três vagas principais: em 1919-1923, 1924-1928 e 1932-1940. Em 1931 os judeus eram 174.610 de um total de 1.035.821 habitantes da Palestina. Em 1939, já são mais de 445.000 e em 1946 atingem o número de 808.230 de um total de habitantes da Palestina respectivamente de 1.500.000 e de 1.972.560. Por outro lado, o Fundo Nacional Judaico, isto é, o fundo da Organização Sionista Mundial para a compra e o desenvolvimento da terra, intensificou a aquisição de terras. Estas tornavam-se "propriedade eterna do povo judaico", inalienável e que só podia ser arrendada a judeus. No caso das explorações agrícolas, até a mão de obra devia ser exclusivamente judaica. Por fim, os sionistas criaram em pouco tempo as principais estruturas do futuro estado, nomeadamente um exército clandestino (a Haganá).

A maneira como os vencedores da Primeira Guerra Mundial decidiram o destino da Palestina, servindo-se para isso da Liga das Nações, é quase uma caricatura da duplicidade e prepotência que não raro caracterizam as relações internacionais. De fato, há especialistas do Direito Internacional que questionam a legalidade das decisões da Liga das Nações em relação à Palestina em nome das regras que ela própria fixara. Assim, apesar de ter classificado a Palestina num grupo de nações às quais reconhecia imediatamente a independência formal e prometia a independência efetiva a curto prazo, a Liga das Nações impôs-lhe um Mandato cujo objetivo prioritário não era a instalação da administração palestina nacional, como previa o documento que instituiu o sistema dos Mandatos, mas, sim, a criação do "lar nacional judaico" com gente que ainda estava espalhada pelo mundo. Ora, este objetivo não só contrariava o processo de transição para a independência política efetiva da Palestina, mas era incompatível com o próprio princípio da sua independência com a população que ela então tinha, princípio esse que a Liga das Nações admitira previamente. Por outro lado, tendo nomeado a Grã-Bretanha para potência mandatária sem ter consultado os palestinos, o Supremo Conselho Aliado não respeitou a regra fixada pelo Pacto da Liga das Nações, segundo a qual os desejos das comunidades submetidas a esse tipo de Mandato deviam ser uma consideração principal na escolha da potência mandatária (art. 22).

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