quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Crítica sobre o livro: “A Arte Não Precisa De Justificativa”




A arte não precisa de justificativa
. Será mesmo? De que “arte” H.R. Rookmaaker está falando em seu livro lançado pela Ultimato? Arte com “A” maiúsculo, referindo-se à Belas Artes e ao sistema que a engloba ou arte no sentido genérico do termo que pode abarcar criações nas mais diversas áreas? Foram com estes questionamentos, induzidos pelo título, e pela bonita capa com um desenho abstrato que, imediatamente, encomendei o livro. Ao terminar a leitura, percebi que havia caído no erro mais elementar do universo dos livros: Julguei o livro pela capa, e julguei mal.

Como se o título do livro fosse mero adereço
, o que Rookmaaker faz ao longo de setenta páginas é tentar justificar uma espécie de arte que ele considera boa, perfeita e agradável. No primeiro capítulo ele diferencia o que chama de arte superior de arte inferior, sendo esta última, chamada de arte comercial, e que, por estar atrelada a interesses econômicos, em sua opinião é destituída de imaginação e qualidade. Sendo assim, ao tratar de artes visuais no decorrer do livro, o autor está referindo-se a Belas Artes e podemos concluir isto através dos exemplos de artistas usados por ele. Pois bem, se o assunto é Artes Plásticas, o meu primeiro questionamento só vê resposta na realidade de que a Arte precisa sim de justificativas. A Arte se alimenta e é alimentada pelo sistema em que ela esta inserida. Um sistema que envolve críticos de arte, curadores, exposições, galerias, museus, bienais, universidades, a História da Arte e por aí vai. Como em qualquer outro sistema, nenhuma peça está neutra ou independente, sendo tudo carente de justificativas e justificativas coerentes com o sistema.

Se Rookmaaker tentasse justificar
o que ele considera Arte a partir dos códigos e limites impostos pelo sistema das Artes Plásticas, tal qual podemos acompanhar pela História da Arte, já seria contraditório com a idéia da não necessidade de justificativa que ele pretende sustentar, porém, seu erro maior foi que, além de impor inúmeras justificativas para a Arte, ele o fez baseado em uma ética pessoal, moralista e anacrônica.

O autor, ao longo do livro, cai num poço tão profundo de contradições que terei de identifica-lás por partes. Para começar, a idéia básica presente no título é a de que arte por si só é uma manifestação da graça de Deus que concede ao homem criatividade. Sendo assim, a arte não precisa conter uma mensagem cristã explícita para ser apreciada com louvor nem nenhuma outra justificativa. Ao mesmo tempo em que afirma isto, o autor (ou seria sua outra personalidade?) aponta diretrizes de como a arte deve ser: “Como a arte está amarrada à realidade, será que ela faz jus ao que representa? Será que o faz de maneira positiva? A arte deve ser clara, nunca tola ou superficial” (pg.51-52). Aqui e em outros trechos, o autor faz a defesa da arte figurativa clássica e renascentista, que reproduzia com fidelidade a realidade do mundo, e, em contraste, desqualifica a arte abstrata que segundo ele “ o que nunca é bom é o abstrato, que significa a negação ou a rejeição da realidade: uma atitude negativa em relação a ela” (pg.65).

Dados os trechos
, nem é preciso apontar a contradição. O que me espanta é saber que um pensador, tido como o mais importante crítico cultural protestante do século XX, consegue, no auge da década de 70, estar tão atrasado e incoerente em relação à sua área de conhecimento.
Ora, esta animosidade com o abstrato e a idéia de vê-lo como pura negação da realidade era algo típico de mentes pouco visionárias e sensíveis no início do século XX, momento em que artistas como Wassily Kandinsky e Piet Mondrian lançam seus manifestos. Daí em diante, as vanguardas modernistas irão todas sofrer ataques como “arte degenerada”, encontrando seu auge de perseguição no Nazismo. Hitler e seus colegas, que consideravam apenas o figurativo clássico como Arte, irão banir da Alemanha toda arte abstrata, valendo-se deste argumento para perseguir, expulsar e matar artistas.

A década de 70
, época em que Rookemaaker escreve o livro, é marcada pelo desenvolvimento acelerado da Arte Contemporânea. O abstracionismo e seus desdobramentos iniciados no início do século já estavam se esgotando e sendo reformulados. É digno de pesar o atraso deste autor que perdeu o bonde do modernismo e nem sequer vislumbrou o contemporâneo. Por uma destas coincidências ingratas da vida, o nosso crítico protestante parecia não saber que os “pais” da arte abstrata tinham uma íntima relação com o protestantismo e as coisas espirituais, sendo a própria abstração uma necessidade declarada de ilustrar o espiritual. Kandinsky teorizou sobre isto em 1912 em um livro lindíssimo com o título: “Do Espiritual na Arte”, Mondrian que era filho de pastor calvinista, teve toda sua obra marcada por estas discussões. Além disso, Rookemaaker deve estar se revirando no túmulo, pois seu livro claramente anti-moderno, incoerentemente foi publicado com uma arte abstrata na capa.

É fato que a igreja cristã está geralmente
atrasada cerca de 30 anos em qualquer discussão sócio-cultural. Quando o assunto é Arte, este número pode ser multiplicado por algumas décadas ou séculos. E agora em 2010, a Editora Ultimato publica um livro de 1977, de um autor que nesta época já acumulava uns cem anos de atraso em sua temática.

Continuando com as contradições, se a arte não precisa de justificativa e nem de mensagem cristã, podemos fruir qualquer obra de arte sem divisão entre sagrado e secular, certo? Errado. Para Rookmaaker a arte precisa obedecer a normas, e normas de DECORO. Parece estranho, mas veja o que ele diz sobre o musical Godspell: “Em nossos tempos a sensibilidade para com o decoro tem se perdido. Um bom exemplo é o musical Godspell. Nele vemos alguns limites sendo negligenciados, um erro contra a norma do decoro. Tratar um tema sublime como a Paixão como se fosse um musical, que por definição é um gênero leve e voltado para o entretenimento, é errado sob qualquer aspecto.” (pg.56)... “Sempre há a questão do conteúdo e do significado” ... “Se a energia da musica for mundana, anarquista e expressar incerteza e até desespero, então o que devemos fazer com ela?” (pg.59). E ao longo do texto ele continua questionando em tom de desaprovação se o rock pode ser adaptável ao cristianismo, afirmando que tem de ter letras corretamente bíblicas, dizendo que o estilo de vida do artista também conta, e ressaltando que tudo deve ser feito com decoro, cristão é claro! O que esperar de alguém que crítica Godspell por falta de decoro? O resultado é um desfile de imposições legalistas do século retrasado.
Honestamente, não sei até que ponto os revisores e responsáveis da Ultimato leram este livro antes da publicação. Tendo em vista o esforço empreendido por tantos líderes cristãos para tentar romper o muro de legalismo que afasta tantas pessoas da igreja (principalmente as que possuem alguma vocação artística), considero este livro um desserviço.

Como última ilustração,
cito o testemunho feito por Rookemaaker na página 62. Uma moça certa vez lhe disse que sonhava em ser artista e lhe pediu conselho. Segundo ele, os desenhos dela não eram tão bons a ponto dele encorajá-la. Então, disse-lhe que não a aconselhava a entrar numa escola de pintura ou arte, pois ela poderia se arrastar anos a fio numa faculdade para no fim acabar com uma pilha de quadros não vendidos no porão. Disse-lhe que deveria tentar desenhar roupas e tecidos.
Creio que este triste relato resume a pobreza e ignorância deste autor em todos os sentidos. Devemos dar graças a Deus por artistas como Van Gogh, para citar um, não terem tido o azar de ter um Rookemaaker como conselheiro. Mais da metade dos grandes artistas não eram tão bons para muita gente pobre de espírito.

Finalmente, não poderia me esquecer
que, na página 72, o autor tem o disparate de chamar Louis Armstrong (o maior gênio do jazz) de palhaço televisivo. Diz que ele “se tornou popular e leviano por causa de dinheiro, criando canções ridículas de ninar para crianças”. Rookemaaker em seu transtorno bipolar, ao mesmo tempo em que acusa, sem fundamentos, Armstrong de buscar o dinheiro, aconselha uma futura artista a não produzir porque possivelmente seus quadros não seriam vendidos.

Meu desejo era ter tido a oportunidade de aconselhá-lo a não escrever nada sobre arte jamais, como não tive, e o estrago está feito, aconselho ao leitor encarecidamente que não compre “A Arte Não Precisa de Justificativa”. Poupe seu tempo e dinheiro e compre um bom livro de Arte. Se o autor for cristão, infelizmente desconfie, o atraso é sério e prejudicial.




Leandro Gonçalves Lança