sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sou a favor de uma arte...

Claes Oldenbug (1929), é um artista que se destacou na cena americana juntamente com Andy Warhol, Richard Hamilton e Roy Lichtenestein dando início ao movimento denominado Pop Art. Ao se apropriar das imagens e objetos do cotidiano de modo a aproximar Arte e Vida, Oldenbug é um destes “turistas” que vem ao mundo nos chamar atenção para o [extra]ordinário nas coisas ordinárias.
Abaixo segue um belo e atualíssimo texto de sua autoria para o catálogo da exposição “Environments, situations and spaces” realizada na galeria Martha Jackson entre maio e junho de 1961.



Sou a favor de uma arte que seja mítico-erótico-política, que vá além de sentar o seu traseiro num museu. Sou a favor de uma arte que evolua sem saber que é arte, uma arte que tenha a chance de começar do zero. Sou a favor de uma arte que se misture com a sujeira cotidiana e ainda saia por cima. Sou a favor de uma arte que imite o humano, que seja cômica, se for necessário, ou violenta, ou o que for necessário. Sou a favor de uma arte que tome suas formas das linhas da própria vida, que gire e se estenda e acumule e cuspa e goteje, e seja densa e tosca e franca e doce e estúpida como a própria vida.

Sou a favor de um artista que desapareça e ressurja de boné branco pintando anúncios ou corredores.

Sou a favor da arte que sai da chaminé como pêlos negros e esvoaça ao vento.
Sou a favor da arte que cai da carteira do velho quando ele é atingido por um pára-lama. Sou a favor da arte que cai da boca do cãozinho, despencando cinco andares do telhado. Sou a favor da arte que o garoto lambe, depois de rasgar a embalagem. Sou a favor de uma arte que sacuda como o joelho de todo mundo quando o ônibus cai num buraco. Sou a favor da arte tragável como os cigarros e fedorenta como sapatos.

Sou a favor da arte que drapeja, como as bandeiras, ou assoa narizes, como os lenços. Sou a favor da arte quese veste e tira, como as calças, que se enche de furos, como as meias, que é comida, como um pedaço de torta, ou descartada, com total desdém, como merda. Sou a favor da arte coberta de ataduras, sou a favor da arte que manca e rola e corre e pula. Sou a favor da arte enlatada ou trazida pela maré. Sou a favor da arte que se enrosca e grunhe como os lutadores. Sou a favor da arte que solta pêlo. Sou a favor da arte que você senta em cima. Sou a favor da arte que você usa para cutucar o nariz, da arte em que você tropeça.

Sou a favor da arte vinda de um bolso, dos profundos canais do ouvido, do fio da navalha, dos cantos da boca, da arte enfiada nos olhos ou usada nos pulsos.
Sou a favor da arte sob as saias, e a arte de esmagar baratas.
Sou a favor da arte da conversa entre a calçada e a bengala de metal do cego.
Sou a favor da arte que cresce num vaso, que desce do céu à noite, como um raio, e se esconde nas nuvens e retumba. Sou a favor da arte que se liga e desliga com um botão.

Sou a favor da arte que se desdobra como um mapa; que se pode abraçar como um namorado ou beijar como um cachorrinho. Que expande e estridula, como um acordeão, que você pode sujar de comida, como uma toalha de mesa velha.
Sou a favor da arte que se usa para martelar, alinhavar, costurar, colar, arquivar.
Sou a favor da arte que diz as horas, ou onde fica essa ou aquela rua.
Sou a favor da arte que ajuda velhinhas a atravessar a rua.
Sou a favor da arte da máquina de lavar. Sou a favor da arte de um cheque do overno. Sou a favor da arte das capas de chuva de guerras passadas.
Sou a favor da arte que sai como vapor dos bueiros no inverno. Sou a favor da arte que estilhaça quando se pisa numa poça congelada. Sou a favor da arte dos vermes dentro da maça. Sou a favor da arte do suor que surge entre pernas cruzadas.
Sou a favor da arte dos cabelinhos da nuca e dos chás tradicionais, da arte entre os dentes de garfos dos bares, da arte do cheiro de água fervendo.
Sou a favor da arte de velejar aos domingos e da arte das bombas de gasolina vermelhas e brancas.

Sou a favor da arte de colunas azuis brilhantes e anuncios luminosos de biscoito.
Sou a favor da arte de rebocos e esmaltes baratos. Sou a favor da arte do mármore gasto e da ardósia britada. Sou a favor da arte das pedrinhas espalhadas e da areia deslizante. Sou a favor da arte dos resíduos de hulha e do carvão negro. Sou a favor da arte das aves mortas.
Sou a favor da arte das marcas no asfalto e das manchas na parede. Sou a favor da arte dos vidros quebrados e dos metais batios e curvados, da arte dos objetos derrubados propositalmente.

Sou a favor da arte de pancadas e joelhos arranhados e traquinagens. Sou a favor da arte dos cheiros das crianças. Sou a favor da arte dos murmúrios das mães.
Sou a favor da arte do burburinho de bares, de paltitar os dentes, tomar cerveja, salpicar ovos, de insultar. Sou a favor da arte de cair dos bancos de botecos.
Sou a favor da arte de roupas íntimas e táxis. Sou a favor da arte das casquinhas de sorvete derrubadas no asfalto. Sou a favor da arte majestosa dos dejetos caninos, elevand-se como catedrais.

Sou a favor da arte que pisca, iluminando a noite. Sou a favor da arte caindo, borrifando, pulando, sacudindo, acendendo e apagando.
Sou a favor da arte de pneus de caminhão imensos e olhos roxos.
Sou a favor da arte Kool, arte 7-Up, arte Pepsi, arte Sunshine, Arte 39 centavos, arte 15 centavos, arte Vatronol, arte descongestionante, Arte Plástico, Arte Mentol, Arte L&M, Arte Laxante, Arte Grampo, Arte Heaven Hill, Arte Farmácia, , Arte Sana-Med, Arte Rx, Arte 9,99, Arte Agora, Arte Nova, Arte Como, Arte Queima de estoque, Arte Última Chance, apenas arte, arte diamante, arte do amanhã, arte Franks, arte Ducks, arte hamburgão.

Sou a favor da arte do pão molhado de chuva. Sou a favor da arte da dança dos ratos nos forros.
Sou a favor da arte de moscas andando em pêras brilhantes sob a luz elétrica. Sou a favor da artede cebolas tenras e talos verdes firmes. Sou a favor da arte do estalido das nozes com o vai-e-vem das baratas. Sou a favor da arte triste e marrom das maçãs apodrecendo.
Sou a favor da arte dos miados e alaridos dos gatos e da arte de seus olhos luzentes e melancólicos.
Sou a favor da arte branca das geladeiras e do abrir e fechar vigoroso de suas portas.

Sou a favor da arte do mofo e da ferrugem. Sou a favor da arte dos corações, lúgubres ou apaixonados, cheios de nougat. Sou a favor da arte de ganchos para carne usados e barris rangentes de carne vermelha, branca, azul e amarela.
Sou a favor da arte de objetosperdidos ou jogados fora na volta da escola. Sou a favor da arte de árvores lendárias e vacas voadoras e sons de retângulos e quadrados. Sou a favor da arte de lápis e grafites de ponta macia de aquarelas e bastões de tinta a óleo, da arte dos limpadores de pára-brisas, da arte de um dedo na janela fria, no pó de aço ou nas bolhas das latrais da banheira.
Sou a favor da arte dos ursinhos de pelúcia e pistolas e coelhos decapitados, guarda-chuvas explodidos, camas violadas, cadeiras com as pernas quebradas, árvores em chamas, tocos de bombinhas, ossos de galinha, ossos de pombo e caixas com gente dormindo dentro.

Sou a favor da arte de flores fúnebres levemente murchas, coelhos ensanguetados pendurados e galinhas amarelas enrugadas, baixos e pandeiros, e vitrolas de vinil.
Sou a favor da arte das caixas abandonadas, enfaixadas como faraós. Sou a favor da artede caixas-d'água e nuvens velozes e sombras tremulantes.
Sou a favor da arte inspecionada pelo Governo dos Estados Unidos, arte tipo A, arte preço regular, arte ponto de colheita, arte extraluxo, arte pronta para consumir, arte o melhor por menos, arte pronta para cozinhar, arte higienizada, arte gaste menos, arte coma melhor, arte presunto, arte porco, arte frango, arte tomate, arte banana, arte maçã, arte peru, arte bolo, arte biscoito.

acrescente:
Sou a favor da arte que seja penteada, que penda de cada orelha, seja posta nos lábios e sob os olhos, depilada das pernas, escovada dos dentes, que seja presa nas coxas, enfiada nos pés.

quadrado que se torna amorfo.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Escrita não-criativa


Trecho do livro Uncreative Writing, de Kenneth Goldsmith, que será publicado em setembro nos EUA.



Há aproximadamente um século, o mundo da arte deu um fim às noções convencionais de originalidade e replicação com os readymades de Marcel Duchamp, os desenhos mecânicos de Francis Picabia e o muito citado ensaio de Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era da Reprodução Mecânica. Desde então, um cortejo de artistas blue chip, de Andy Warhol a Matthew Barney, levou essas ideias para novos patamares, resultando em noções muito complexas de identidade, mídia e cultura. Isso se tornou de tal forma parte integrante do discurso mainstream do mundo da arte, que reações contrárias, baseadas no genuíno e na representação, emergiram. De forma semelhante, na música, o sampling – faixas inteiras compostas a partir de outras faixas – tornou-se lugar-comum. Do Napster aos jogos de computador, do karaokê aos arquivos torrent, a cultura parece estar adotando o digital e toda a complexidade que ele envolve, com exceção da escrita, que ainda é majoritariamente comprometida com a promoção de uma identidade autêntica e estável a todo custo.

Não estou dizendo que esse tipo de escrita deve ser descartado: quem nunca se emocionou com um grande livro de memórias? Mas sinto que a literatura – infinita no seu potencial de tipos de expressão – está em ponto morto, tendendo a bater na mesma tecla repetidas vezes, limitando-se ao mais estreito dos espectros, o que resulta em uma prática que perdeu o passo e é incapaz de tomar parte daquele que é, sem dúvida, o debate cultural mais vital e excitante do nosso tempo. Acho que este é um momento muito triste – e uma grande oportunidade perdida para a criatividade literária revitalizar-se de maneiras que não se tenha imaginado.

Talvez uma razão para a escrita estar emperrada pode ser o modo como a escrita criativa é ensinada. Em relação a muitas ideias sofisticadas sobre mídia, identidade e sampleagem desenvolvidas ao longo do século passado, os livros sobre como ser um escritor criativo perderam completamente o rumo, confiando em noções estereotipadas do que significa ser "criativo". Esses livros são temperados com conselhos do tipo "um escritor criativo é um explorador, um inovador. A escrita criativa permite-lhe traçar o seu próprio caminho e ir audaciosamente até onde ninguém jamais foi". Ou, ignorando gigantes como De Certeau, Cage e Warhol, sugerem que "a escrita criativa é a libertação das limitações impostas pela vida cotidiana"(1). No início do século 20, Duchamp e o compositor Erik Satie manifestaram o desejo de viver sem memória. Para eles, era uma maneira de estar atento para as maravilhas do dia a dia. No entanto, parece que cada livro sobre escrita criativa insiste em que "a memória é muitas vezes a principal fonte de experiência imaginativa". Acho as seções "como fazer" desses livros extremamente vulgares, coagindo-nos, em geral, a priorizar o dramático em detrimento do mundano, como base para nossos escritos: "usando o ponto de vista na primeira pessoa, explica-se como um homem de 55 anos se sente no dia do seu casamento. É o seu primeiro matrimônio". Prefiro as ideias de Gertrude Stein, que, escrevendo na terceira pessoa, fala de sua insatisfação com esse tipo de técnicas: “Ela experimentou de tudo na tentativa de descrever. Tentou um pouco inventar palavras, mas logo desistiu. O inglês era o seu meio e, com a língua inglesa, a tarefa era para ser feita e o problema resolvido. O uso de palavras inventadas ofendeu-a, era uma fuga para o sentimentalismo imitativo”(2).



(Tradução: Giselle Beiguelman)

1. Laurie Rozakis, The Complete Idiot’s Guide to Creative Writing (New York: Alpha, 2004), p. 136.

2. Gertrude Stein, The Autobiography of Alice B. Toklas (New York: Vintage, 1990), p. 119


Fonte: www.select.art.br

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Meu credo

Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os batismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.

Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitetura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.

Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une - o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.

Creio no Deus que se faz refração na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.

Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfêmias.

Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.

Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, soada a música, arrebata-nos à saciedade.

Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.

Creio no Deus que se esconde no avesso da razão atéia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.

Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.

Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.



Um novo credo - Frei Betto

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Pelo acesso aos de casa


por Leandro Lança

É possível trabalhar durante anos em uma instituição cultural sem jamais fruí-la?
A resposta infelizmente é sim, e não é raro que isto aconteça.

Bilheteiras que nunca assistiram uma sessão, porteiros de teatro que nunca viram um espetáculo, faxineiras de museu que não sabem se quer o que venha a ser um museu, é uma realidade pouco notada, mas como diz a música de Chico* :

Há milhões desses seres
Que se disfarçam tão bem
Que ninguém pergunta
De onde essa gente vem

São como diaristas em casarões que ao limpar e guardar o patrimônio tem acesso físico aos cômodos da casa, mas nunca ao que acontece de fato ali.

Sobretudo em um país com exacerbada desigualdade social isto acaba se tornando comum e confirmando a teoria de Pierre Bourdieu, segundo a qual, não basta ter acesso a espaços culturais, é necessário dar acesso ao capital simbólico que permite ao indivíduo interagir com estes espaços e com o discurso que se constrói ali.

As instituições culturais que possuem setores educativos (como os museus) têm como uma de suas funções principais darem acesso, no sentido amplo é claro, a população em geral. Diante disso, proponho o óbvio. Que os “de casa”, “os invisíveis que assumem formas mil”, tenham prioridade a receber no mínimo visitas orientadas no museu onde trabalham, bem como incentivo a freqüentar este patrimônio cultural público com seus parentes.

Certa vez uma senhora que trabalha como faxineira em um museu me contou sobre sua relação com este “ente estranho” no qual ela trabalhava, mas pouco conhecia.
Disse-me, por exemplo, que, ao ser designada pela empresa terceirizada de serviços gerais para o museu, demorou um bom tempo até achar alguém que pudesse lhe explicar o que viria a ser um museu. Com mais de cinqüenta anos provavelmente, esta senhora nunca havia entrado em um museu antes, e, mesmo depois de ter entrado nunca havia realizado uma visita.

Penso que para além de conhecer seu local de trabalho e a cultura por ele difundida, seria interessante um projeto de intercâmbio entre museus que possibilitasse a estes funcionários com menos acesso conhecer outras instituições culturais.

Este é um exercício mais do que de cidadania, um exercício de sensibilidade, por que não, de amor ao próximo, aquele próximo, que, assim preferia crer, pela extrema proximidade acaba se ofuscando.


* Brejo da Cruz – Letra de Chico Buarque de Holanda

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Alguma opinião sobre arte e fé


por Leandro Lança

Há poucos meses, fui questionado por algumas pessoas sobre o que eu pensava a respeito de arte e fé, mais especificamente acerca das Artes Plásticas. Por ser um sujeito de fé e que "mexe com" Arte, me atrevo neste texto a dar opiniões.

Temos consciência de quando precisamos fazer uma consulta com um médico, ter uma reunião com um advogado, ou até mesmo dar um pulo na padaria. Mas ninguém acorda com a necessidade consciente de ver uma obra de arte. De alguma maneira precisamos de arte, mesmo não sabendo exatamente o porquê. Parece-me que o poeta Fernando Pessoa estava certo quando disse: “ A arte é a prova de que a vida não basta”.

O início de minha reflexão sobre arte e fé se dá, então, a partir da hipótese de que se todo ser humano necessita de arte os cristãos não estão fora disso. Mas, antes de falar qualquer coisa sobre fé e cristianismo no contexto artístico, é necessário delinear, mesmo que de forma rasa, minha idéia de fé e, em seguida, de arte.

Arte, Crença e Fé

Ao falar sobre fé é preciso fazer a distinção pouco comum entre fé e crenças. O sociólogo Jacques Ellul nos mostra esta distinção de forma bem clara.

Para Ellul, crença é aquilo que professamos acreditar, é o contéudo doutrinário expresso com palavras muito bem escolhidas em nossas declarações de fé. Nossas crenças são passíveis de exposição, mas nossa fé é uma questão pessoal, que existe ou não, independente de crenças. A fé é o mistério entre eu e Deus. A crença é a tentativa humana sempre incompleta de dar conta do mistério.

“A fé pressupõe a dúvida, a crença exclui a dúvida. A fé não é o oposto da dúvida, a crença é. Os soldados da crença agem sem questionamento de acordo com a lei e os mandamentos. São inflexíveis nas suas convicções, não toleram qualquer desvio. Na articulação de sua crença eles imprimem rigor e absolutismo ao extremo. Refinam incessantemente a expressão da sua crença e buscam dar a ela uma formulação intelectual específica num sistema tão coerente e completo quanto possível. Insistem na completa ortodoxia. Codificam rigidamente modos de pensar e de agir.”

A partir deste entendimento, a relação entre arte e fé se torna uma experiência possível sempre e nunca, experiência não sistematizável, inclassificável. Posso ter uma relação com o sagrado mediante qualquer obra de arte, independente de seu conteudo ou forma. Porém, se entro no terreno das crenças, pensamentos sistematizados que nos conduzem a ortodoxias, a relação com a arte passa a ser determinada pela crença que legitima ou deslegitima as manifestações artísticas a partir de sua ética própria que avalia e filtra conteúdos e formas. Assim como a crença nunca apreenderá por completo o mistério da fé, crença alguma jamais será capaz de esgotar os mistérios de um conhecimento tão subjetivo e amplo como o artístico.

Trabalho com um campo teórico que aceita a hipótese de a arte ser um conhecimento específico, diferente do conhecimento científico. Tal conhecimento artístico opera com outras categorias de análise, outros paradigmas, mobilizando os sentidos em direções diversas daquelas operacionalizadas pelo método científico. A arte, neste sentido, não serve ao homem como apenas meio de reprodução de realidades, mas como meio de produção de realidades que não poucas vezes escapam à razão. Parafraseando Pascal, diria que: "A arte tem razões que a própria razão desconhece".

A fruição

Ao cristão, me parece que cabe em primeiro lugar a questão da fruição. É lícito ao cristão fruir qualquer obra de arte, ou, há obras, que, seja pelo conteúdo ou forma, não seriam permitidas ao cristão fruir?

Penso como Jesus, para quem o mal não está no que entra, mas no que sai de nós. Condenar uma manifestação artística como intrinsecamente maléfica é a mais baixa forma de transferência de responsabilidade. A grande questão está em que, para uns, carne vermelha causa mal, e, para outros não, para uns convém comer só vegetais, outros não suportariam isto, de modo que seria inviável criar categorias de consumo universais. Não acredito que o rock seja a melhor música para todos, mas também não posso concordar que ela seja ruim para todos porque sua forma e conteúdo são mais agressivos que outros estilos.

Uma situação trazida pela arte que geralmente é mal compreendida, e que não podemos descartar, é que, em muitas vezes, os artistas usam estratégias que geram propositalmente o mal-estar com o intuito artístico de nos retirar de zonas de conforto e nos fazer refletir em realidades que, apresentadas de outra forma, não teriam impacto algum. É preciso reconhecer que, até mesmo a representação do mal pode nos aproximar do bem.

O problema com a Arte Moderna

Recentemente, descobri que para alguns pensadores neocalvinistas, a arte moderna seria uma comprovação da degeneração de uma humanidade distante de Deus. Alertam incisivamente sobre a "horrorosa" arte abstrata, que seria uma expressão esteticamente desqualificada, destrutiva e empobrecedora da vida. Fugindo aos temas figurativos, este tipo de arte não representaria a criação, além disso, seria uma representação do absurdo típico de uma realidade fragmentada, niilista e distante de Deus. Este tipo de posicionamento me lembra uma realidade típica em certa ala da igreja, segundo a qual, o cristão pode e deve se assentar na “mesa secular”, mas só deve comer o que for legitimado por sua teologia. Muitas vezes, os impedimentos terão como fundamento somente determinada crença, que exclui todas as outras e inclusive a subjetividade do indivíduo. Em outras situações, como acredito ser o caso aqui, o caráter ilegítimo pode ter raízes no desconhecimento do objeto ou no gosto pessoal.

O abandono total da representação figurativa (temporariamente) que parcela da arte moderna ocidental começa a operar no início do século XX é o ponto mais alto de uma tendência que começava a se observar já no Renascimento, a saber, a busca de autonomia (ainda que relativa) da arte, comum a todo campo de conhecimento em vias de formação. Estamos falando de um momento onde o artista verdadeiramente toma posse dos seus próprios meios de produção e passa a refletir sobre eles. A arte finalmente está livre das imposições do clero e da nobreza. São as reflexões possibilitadas por este momento histórico que conduzirão às investigações abstratas. O abandono da representação e a busca do desenvolvimento formal não foi algo típico apenas das artes plásticas, mas um processo natural a outras manifestações artísticas, como nos lembra o historiador Paulo Sérgio Duarte:

“Não custa lembrar que o universo da música havia se libertado há muito tempo desse dilema: representar ou não representar. Se na ópera há sempre narrativa e representação, se nas canções existem histórias, se na música de programa encontramos sugestões de representação de cenas extramusicais, como buscar representação fora das relações formais da própria música numa fuga de Bach, num quarteto de Beethoven, num solo improvisado de Armstrong, Duke, Miles ou Coltrane? Esqueça a letra de carinhoso, de Pixinguinha, a música resiste a qualquer interpretação puramente instrumental, continua a produzir sentido mesmo sem as palavras, até para aquele que nunca ouviu a canção. (...) A arte moderna alcançou, em alguns de seus campos de investigação, a produção poética por meio de elementos puramente óticos: o olho conquistava uma experiência artística de valor equivalente ao que estava ao alcance do ouvido há alguns séculos no ocidente.”

O curioso é que os mesmos pensadores neocalvinistas que diminuem e deslegitimam a arte abstrata não se importam em cultivar e legitimar as fugas de Bach e a improvisação do Jazz como o melhor que há na música.

No clássico livro de John Dewey “Arte como experiência”, falando sobre arte abstrata e citando Albert Barnes, ele diz:

“A referência à vida real não desaparece da arte quando as formas deixam de ser as de coisas que realmente existem, do mesmo modo que a objetividade não desaparece da ciência quando ela deixa de falar em termos de terra, fogo, ar e água e substitui essas coisas por outras menos fáceis de reconhecer como hidrogênio, oxigênio, nitrogênio e carbono”


A análise de todo objeto artístico é feita através de juízos estéticos, e juízo estético será sempre juízo de valor. O que alguns autores cristãos muitas vezes tentam fazer, infelizmente, é dar ao seu juízo estético um valor de verdade absoluta mediante sua teologia, que tenta ser a melhor e, muitas vezes, única leitura possível de Deus. Tal empreendimento se revela empobrecedor, principalmente porque não reconhece os métodos artísticos de análise. A mesma ignorância que, quando se tratando de ciência, tenta abolir o método científico, desqualificando e achatando suas contribuições. O conhecimento científico vem perdendo um pouco a imagem de vilão em muitas igrejas, sobretudo com a iniciativa de debates entre fé e ciência que reconhecem os limites e a relevância de cada área. Neste mesmo caminho, o conhecimento artístico precisa ser melhor conhecido e reconhecido. Dentro desta perspectiva, devemos reconhecer que é na modernidade que a arte ganha autonomia relativa para se desenvolver enquanto área de conhecimento específico. E, para a alegria de uns e assombro de outros, é ainda na arte moderna que iremos acompanhar a crítica destrutiva e elucidativa do conhecimento científico e da institucionalização da arte.

A partir deste panorama em transformação constante é que defendo Jesus, puro e simples como o óculos de leitura do cristão. O Jesus que nunca sistematizou teologias, muito menos TEOLOGIA. É a partir de Jesus que consigo ver Deus, além de outras coisas, nas composições de um Kandinsky, Mondrian ou Malevicth. Se alguns pensadores cristãos não conseguem é porque seus óculos talvez sejam teológicos demais, ou simplesmente porque a arte abstrata desagrada seus juízos estéticos. Se o problema é de gosto, não tenho nada a declarar, mas que não venha justificar seu gosto como se este fosse o gosto correto para todo filho de Deus.


Arte cristã

Após a questão da fruição, dentro deste tema é preciso discutir acerca da possibilidade de uma “arte cristã”.

Nenhum cristão menos bitolado no gueto evangélico saí por aí procurando engenheiro cristão, design cristão, dentista cristão, cozinheiro cristão,etc, como se isso fosse uma credencial necessária ou fundamental. Por que, então, tanta ânsia com a busca de arte cristã? A única resposta plausível que vejo para isto é o fato de todas as artes estarem associadas por séculos à produção mais profana que o homem pôde produzir. Por ser “naturalmente profana", a arte precisa ser redimida, de tal forma que se torne desejavelmente cristã (sagrada). O grande engodo é que ao tentar cristianizar suas produções, geralmente o chamado artista cristão entra no domínio do utilitário (proselitismo e afins) e, consequentemente, sem perceber, banaliza o sagrado inviabilizando sua manifestação. Sagrado que, é bom que se frize, não necessita e nunca necessitará do suporte religioso para se manifestar.

O que muitos cristãos parecem ainda não entender é que, quando levantamos uma bandeira e um slogan, no campo das produções artísticas principalmente, a mensagem que queremos passar perde sua força. O artista cubano Félix Gonzales-Torres, dizia que: “A boa obra de arte política é aquela que não aparenta ser política”. Os cristãos precisam aprender isto, aprender com os tropicalistas baianos, por exemplo, que nunca se intitularam “artistas do candomblé” e sempre difundiram suas crenças contribuindo igualmente para o melhor da música popular brasileira. Creio que o mundo carece de uma arte que fale do verdadeiro Cristo, mas definitivamente não precisamos de militantes cristãos e de sua ortodoxia em relação à forma e conteúdo.

Além de não trazer nenhum benefício ao mundo, os termos arte cristã ou artista cristão são muito recentes. Os grandes mestres do passado que confessavam a fé cristã de maneira nenhuma se apresentavam como artistas cristãos ou se dedicavam exclusivamente a temas cristãos. O problema é que temos hoje um segmento do mercado que consome qualquer bem cultural que se intitule cristão, contribuindo para a pobreza cultural velada pelo movimento evangélico.

Possibilidades


Finalmente, como alguém que acredita na potência da arte enquanto meio de conhecimento acerca de Deus e de toda criação, bem como um meio de transformação do mundo, penso que, em primeiro lugar, enquanto nação, precisamos de um público fruidor, pensador e criador de arte. Depois do público motivado, precisamos do acesso e da educação em arte. Se esta primeira etapa se concretizar, será natural e construtiva a elaboração de teorias que abordem a relação (votada a abertura pluriparadigmática) entre arte e fé.

O que tenho acompanhado no meio cristão é a inversão destas etapas. As consequências disto são variadas. A mais visível, é a proliferação, iniciada há decadas, de grupos de teatro, dança e música cristãos. Tomando o teatro, por exemplo, na falta de um público conhecedor de teatro, não há desenvolvimento, pesquisa, sequer alguma motivação na busca do conhecimento dramatúrgico. Neste sistema movido pela empolgação e muitas vezes pelo proselitismo, atores e espectadores vivem uma relação parasitária, onde ambos se beneficiam da ignorância alheia, e, no fim, todos vão embora satisfeitos com a sensação de dever cumprido. Livros são lançados, congressos realizados e um sem-número de atividades são realizadas sem nunca chegarem a ter ressonância além dos muros, onde a coisa é levada a sério. Sei que deve haver raríssimas exceções aqui, mas a regra geral é esta, e, as exceções, sabemos, confirmam as regras.

Mais recente são as tentativas de introduzir artes visuais no cenário cristão brasileiro (leia-se igrejas evangélicas). Acho pouco e acho bom, como bem disse Guimarães Rosa: "Dar beleza a quem tem fome de beleza é também um dever cristão". Mas as metodologias precisam ser repensadas. Três coisas me parecem básicas:

1- Arte não cabe em caixa teológica.

2- Se dispor a fruir ou fazer arte necessita abertura à subjetividade, algo que na maioria das vezes não casa muito bem com as estruturas eclesiásticas.

3- Estamos falando de um contexto nacional de analfabetismo artístico em massa. O mais urgente neste contexto é formação e informação para que as pessoas tenham acesso,pelo menos, aos códigos básicos de leitura de uma obra de arte visual. Aqui deveríamos tomar como exemplo bem sucedido os cineclubes católicos que foram fomentados pela igreja entre as décadas de 60 e 80, principalmente, e tiveram grande relevância na história do cinema nacional.


Que Deus nos ajude!




Referências citadas:

ELLUL, Jacques. Fé Viva: Crença e Dúvida num Mundo Perigoso. San Francisco: Harper and Row, Publishers, 1983. (Texto traduzido em www.baciadasalmas.com)

DEWEY, John. Arte como Experiência. Ed, Martins Fontes. São Paulo. 2010.

DUARTE, Paulo Sérgio. Arte Brasileira Contemporanea. Ed. Opus-Plajap, 2008.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

Woody Allen em "Take Your Money and Run!", algo além da piada



por Leandro Lança

Introdução

Existem algumas características marcantes que diferenciam o cinema realizado por um “autor cinematográfico”. A constituição progressiva, filme a filme de um universo próprio, composto de temas, técnicas e especificidades que retornam em maior ou menor grau independente do gênero abordado, é sem duvida uma das mais visíveis.

Dono de uma obra que já conta com mais de 40 filmes, Woody Allen soube criar com maestria seu universo, talvez um dos mais autobiográficos da história do cinema, se é que existe autor não biográfico neste sentido. A primeira fase de sua obra conta com filmes que, aos olhos de muitos, são apenas uma avalanche de “piada por piada”. Aos meus olhos, estes filmes contêm mais que risos. Contêm os traços daquilo que Woody permaneceria construindo ao longo das quatro décadas seguintes.

Este artigo pretende abordar alguns aspectos recorrentes na obra de Woody Allen, que, em grande parte encontra-se presente em seu primeiro filme como diretor.


Descobrindo Woody Allen


Lembro-me exatamente do momento em que me tornei um admirador confesso do trabalho de Woody Allen. Sob recomendação de um professor, consegui uma cópia do filme Zelig (1983). Logo no início do filme tive uma súbita certeza de que havia cometido algum equivoco. Certamente se tratava de outro filme (um documentário), ou o que estava assistindo era parte do “Extras”, não o filme em si. Por se tratar de uma cópia sem nenhuma informação adicional, só depois de uma rápida pesquisa na internet pude compreender que o filme se tratava de um pseudo-documentário. A idéia e a forma com que o filme fora montado despertaram em mim vontade de conhecer a obra do diretor, junto à certeza de que Woody Allen fazia um cinema diferente, cinema que, eu em minha completa limitação cinematográfica precisava conhecer.

Depois de assistir filmes como: Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), Manhattan (1979), A rosa púrpura do Cairo (1985), Hanna e suas irmãs (1986), Poderosa Afrodite (1995), Dirigindo no escuro (2002), Ponto final (2005), finalmente tive acesso aos filmes que compõe a primeira fase de seu trabalho. Filmes dedicados exclusivamente a comédia como: Um assaltante bem trapalhão (1969), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar (1972), O dorminhoco (1973) e A última noite de Boris Grushenko (1975).

Esta primeira fase, mesmo sendo essencial para o universo que Woody Allen viria a criar em torno de si, apesar de ter o revelado como cineasta, capaz de fazer o publico rir além de suas apresentações como Stundy Up comedian e a despeito de ter produzido “entretenimento inteligente”, é muitas vezes vista como uma fase que produziu trabalhos “menores”. O próprio Woody Allen confessou algumas vezes que sua intenção com os primeiros filmes era simplesmente fazer rir. Woody diz que sabia de seu poder como comediante, sabia que com a comédia poderia chegar onde quisesse. Em contra partida, quanto aos aspectos técnicos e artísticos desses primeiros filmes o diretor pouco sabia e pouco se importava. Entrevistado por Eric Lax em 1972 Woody fez a seguinte declaração:

“O jeito seguro de fazer o meu tipo de filme é subordinar tudo à risada. Basicamente, ou você faz isso ou não sobrevive, porque ninguém vai se importar se a seqüência está bonita, só se ela funciona.” (LAX, Eric. pg.351)

Só a partir de O Dorminhoco, Woody começaria a se preocupar com a estética de seus filmes, e seu trabalho daria uma verdadeira guinada nesse sentido depois de Noivo neurótico, noiva nervosa, quando têm inicio sua colaboração com o renomado diretor de fotografia Gordon Willis.

“Realmente, a minha maturidade no cinema começou quando me associei a Gordon Willis. Os filmes que fiz antes foram, creio eu, engraçados, exuberantes e o melhor que pude fazer, mas não sabia, realmente, o que estava fazendo.” (BJORKMAN, Stig. Pg,34)

Em meio a viagem pela obra de Woody, minha maior surpresa foi sem dúvida Um assaltante bem trapalhão. A idéia do falso documentário em Zelig havia me deixado a impressão de algo inovador, por se tratar, além de outras coisas, de um filme realizado no início dos anos 80. Ver que Woody Allen já havia utilizado este recurso em 1969 no seu primeiro filme, foi no mínimo curioso. Segundo Eric Lax, o estilo de falso documentário de Um assaltante bem trapalhão abriu caminho para o que passou a ser conhecido como “mockumentaries”, entre eles os filmes de Crhistopher Guest (Esperando o Sr, Guffman, O melhor do show, A Mighty Wind), Isto é Spinal Tap (dirigido por Rob Reiner) e, é claro, Zelig.

Mesmo dizendo em 1972 que tudo estava subordinado a piada em seus primeiros filmes, em outra entrevista concedida a Eric Lax em 1987, Woody Allen observa que sempre teve um senso de estrutura, mesmo quando as pessoas achavam que não. Segundo ele, a maior parte do público não conseguia ver isso por acharem que era só piada-piada-piada. Esse tipo de incompreensão também ocorreu em Zelig. O filme que trata de um sujeito que no intuito de ser aceito e querido desiste de sua própria personalidade, reflete segundo o próprio Allen uma característica do fascismo, onde toda personalidade é destruída para ser parte do grupo. Essa idéia profunda por trás do filme foi durante muito tempo pouco comentada em detrimento da técnica do pseudo-documentário que, muita gente já não se lembrava ter sido usada pelo diretor em sua estréia.


Além da piada


Defendo que, Um assaltante bem trapalhão possui algo mais, além de uma avalanche de gags visuais e verbais, ou a origem dos mockumentaries. No filme acompanhamos a trajetória de Virgil Starkwell. Virgil é um sujeito fracassado que aparenta ter um forte complexo de inferioridade. A forma de resolver suas limitações foi desde cedo se envolver com o crime, (na adolescência seu alvo era ser parte de uma gangue) mas sempre desastrado e incompetente, Virgil acaba sempre na prisão. Quando consegue liberdade condicional, conhece e se apaixona por Louisse (Janet Margolin), empregada de uma lavanderia. Pensa em mudar de vida e casar, mas não consegue abandonar a vida de assaltante.

Muito influenciado pelo estilo anárquico das comédias feitas pelos Irmãos Marx, Woody Allen apresenta nessa comédia aparentemente despretensiosa, um personagem anárquico, um anti-herói, que não consegue se adaptar aos padrões vigentes. Mesmo sendo um desastre, Virgil se torna um criminoso famoso e uma afronta ao modelo de sociedade americano. Para o FBI, que passa a procurá-lo, o assaltante poderia fazer parte de um plano subversivo, pois era ateu e comunista. Após ser preso pela quarta vez, Virgil afirma em entrevista, que o crime é um bom trabalho, pois, entre outras coisas, os horários são flexíveis, conhece-se muitas pessoas e lugares diferentes. Diz que muitos de seus ex-comparsas tornaram-se políticos e ao fim da entrevista e do filme, vemos que esta envolvido em uma nova tentativa de fuga.

Entre outras coisas, parece-me claro que por trás do filme há uma critica sutil ao “American way of life”. Woody Allen desconcerta com muito humor, através de um desviante social, os valores e ideais de sucesso de uma sociedade burguesa: Trabalho, família, amor romântico, religião, estabilidade. Neste sentido o filme é menos uma “divertida apologia ao crime”, do que uma critica aos valores. Virgil, apesar de criminoso, não representa nenhum perigo real a sociedade, trata-se de um sujeito atrapalhado, sem lugar, incapaz de produzir alguma maldade de fato. Já no inicio do filme ouvimos a narração em off apresentar um individuo procurado pela policia em diversos estados em contraste com a foto de Virgil bebê, sereno e indefeso. Em contra partida, os personagens que representam a lei e a ordem são extremamente questionáveis e criticados de maneira cômica, como se representassem maior perigo que Virgil a sociedade. Os pais de Virgil são apresentados como, uma mãe super protetora e equivocada em relação ao filho e o pai como um sujeito severo que desiste de Virgil por não conseguir lhe incutir a idéia de Deus. Em sua primeira prisão Virgil é solto a partir de uma experiência nunca testada em humanos da qual ele aceita ser cobaia. Na terceira prisão um cowboy/delegado responsável pela prisão trata os prisioneiros como animais. Quando resolve arranjar um emprego convencional, Virgil se torna vitima de suborno por parte de uma colega de trabalho. Enfim, em meio a gargalhadas ininterruptas o espectador torce para que o criminoso desastrado se safe em meio à hipocrisia velada dessa sociedade burguesa. Parece significativo o fato do segundo filme de Woody Allen, Bananas (1971) - além de ser subordinado a piada como o anterior - ser uma crítica aos movimentos revolucionários na América do Sul e a postura intervencionista do governo americano. Essa postura crítica, porém sutil e cômica a respeito da política, aproxima-se muito da contribuição de Billy Wilder nestes temas.


O Autor


Allen possui todas as características de um autor, dentro da perspectiva elaborada na década de 60 pelos “Jovens Turcos”, conhecida como “Política dos autores”. Depois de uma experiência frustrante logo no seu inicio no cinema como roteirista do filme “O que é que Há, Gatinha?”, (onde o roteiro foi modificado e mal interpretado) tomou a decisão de nunca mais escrever um filme que não fosse dirigido por ele. Algo parecido com o que ocorreu também a Billy Wilder. Já em sua primeira oportunidade de dirigir, Woody Allen recebe carta branca de uma nova e pequena companhia de cinema, a Palomar Pictures. A única exigência era que o filme fosse realizado com menos de um milhão. Este modelo de produção, com liberdade total e baixo orçamento, é uma tônica no trabalho de Woody até hoje. Este sem dúvida é um dos fatores preponderantes para que ele pudesse criar a seu modo um universo próprio, recheado de temas, referências e combinatórias narrativas que se repetem em todos os seus filmes.

Ao pensar este universo de Woody Allen, vejo que seu primeiro filme possui uma importância salutar. Não do ponto de vista técnico, pois, fotografia, iluminação, elaboração de planos, acabamento e cenários, tudo isso era secundário neste momento para o diretor. O uso da narração, talvez seja o único que eu consiga identificar como recurso técnico que Allen vai se valer mais tarde. Um assaltante bem trapalhão é em sua grande parte narrado em off.

E segundo Eric Lax:

"A narração passará a ser um dos recursos favoritos de Woody. Em Zelig, A era do rádio, Maridos e esposas, entre outros, ela é o fio que liga a história”. (LAX, Eric. 2008, pg.352)

No entanto, do ponto de vista temático tudo ou quase tudo que iria compor seu universo já estava em Um assaltante bem trapalhão. Temas como:

Humor judeu - característico por fazer piadas a cerca de fracassos próprios e situações adversas (aparecem o tempo todo na trajetória de Virgil),

Psicanálise – Referências a Freud e a psicanálise em geral ocorrem em quase todos os filmes de Wood Allen. Aqui, temos a cena onde um psiquiatra é entrevistado junto a um paciente deitado num divan, e as ações de Virgil são interpretadas pela psicanálise. O violão celo que Virgil tocava na adolescência seria um conjunto formado de um símbolo fálico e um corpo que sugeria formas femininas.

Dificuldade com mulheres e sexo – Este tema recorrente em vários filmes de Woody terá sua forma mais bem acabada em Noivo neurótico, noiva nervosa. Neste vemos o começo desta questão ser trabalhada nas cenas hilárias de Virgil tentando desabotoar sem sucesso o vestido ou soutien de Louisse e a câimbra na planta dos pés que ataca Virgil na hora do sexo. Doenças e mal estar corporal, geralmente psicossomático é outro tema super abordado por Woody.

Elementos autobiográficos - Woody Allen é considerado um dos autores de cinema mais autobiográficos, sendo o filme Memórias (1980), o mais evidente. Em Virgil, há algumas coisas de Woody Allen, a começar pela mesma data de nascimento. Como o personagem, Woody nunca se deu bem na escola apesar de seu alto QI e na adolescência se interessou por instrumentos musicais.

Paródias de filmes e gêneros
– Um assaltante bem trapalhão, alem de ser um falso documentário faz paródias a filmes sobre assaltantes famosos como Jesse James, com seus clichês como, grandes assaltos a bancos, fugas espetaculares da prisão, etc. Em filmes bem próximos ela faria novas paródias a filmes italianos em um capitulo de Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar , e a Bergman em cenas de A última noite de Boris Grushenko.

Metalinguagem – Este é um artifício que vira e mexe reaparece em filmes de Woody como, A rosa púrpura do Cairo ou Dirigindo no Escuro . Na grande tentativa de assalto a um banco, Virgil propõem que tudo seja a simulação de um filme com diretor e tudo.

Outros temas deste universo que aparecem já em Um assaltante bem trapalhão como referência são: religião, inadequação com máquinas, Jazz, beisebol e cinema europeu.



Conclusão


Nos Estados Unidos, Woody Allen não parece ter uma boa reputação frente ao grande público e a critica, pelo menos não tão boa quanto em outros países. Como ele mesmo gosta de dizer: “Não sou artista o suficiente, nem comercial o suficiente”. No capitulo dedicado a Woody Allen no livro “Grandes Diretores de Cinema” lemos:

“Ninguém é profeta em seu país, e Woody Allen é o perfeito exemplo disso. Tratado nos EUA como um cineasta marginal, ele é, há trinta anos, considerado pelo público francês como um verdadeiro semideus”. (TIRARD, Laurent. 2006. pg.82)

O curioso é que, segundo o próprio Woody Allen, o público americano gosta muito de suas primeiras comédias e nem tanto do restante de sua obra, sendo que, ali já esta contido ao menos do ponto de vista temático, todo o seu universo.

Há uma cena ótima em Um assaltante bem trapalhão quando Virgil e seus comparsas estão planejando o assalto que será um falso filme. Um dos bandidos diz que conhece um ex detento realizador de filmes que seria uma ótima ajuda. O diretor com sotaque alemão diz ter participado de filmes antes do cinema se tornar sonoro, seu nome é Fritz (Fritz Lang?). A certa altura da conversa com Virgil o ex-diretor europeu diz que: “Hollywood não reconhecia seus gênios”. Woody Allen seria um deles mais tarde.




Referências:


LAX, Eric. Conversas com Woody Allen. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

BJORKMAN, Stig. Woody Allen por Woody Allen. Rio de Janeiro. Editora Nórdica, 1995.

TIRARD, Laurent. Grandes Diretores de Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Carta a Michel Leiris

Carta motivada pela leitura de "O Espelho de Tauromaquia" escrito por Michel Leiris(1901-1990). Leiris foi escritor, etnólogo e crítico de arte francês.


Belo Horizonte, oito de junho de 2011

Caro Leiris,


Dentre as várias revelações que me foram apresentadas por você através da tauromaquia, duas analogias me atravessaram. A primeira diz respeito ao amor e a segunda ao sacrificio.

As características do matador (personagem em geral Don-juanesco), tais como seus trajes brilhantes, a coreografia de seu trabalho, o modo como estira ou encurva seu corpo, junto à característica fálica do touro (cujos genitais são comidos por alguns aficionados após a corrida) são bem sugestivas. Unem-se a isso as características da dança que envolve vítima e algoz em ritmo de vai-vem em seqüência de aproximação e distanciamento. Em suas palavras, a conclusão deste “coito” termina com “uma espécie de penetração, a estocada final, na qual é desejável que a espada seja enterrada na ferida até que se molhem os dedos”. Ao ler isto, lembrei-me de um texto sobre o trabalho do artista Miguel Rio Branco, onde um crítico de arte fazendo associações com touradas, relacionava o matador ao feminino e o touro ao masculino.Para este autor, no jogo amoroso, cabe geralmente a mulher a arte da sedução. Fazendo uso de trajes especiais, acessórios e gestos, aos poucos a mulher coloca para dançar o homem, com toda sua virilidade irracional e intempestiva. Com leveza, a mulher dribla a força bruta do homem conseguindo o que quer, e, no momento em que ele se sente mais ativo e dominador, é dominado e dilacerado por um golpe certeiro.

Em relação ao sacrfício sagrado não poderia deixar de associar à performance antropofágica proposta por Cristo na última ceia. Ato que permanece como rito e festa na eucaristia. De alguma maneira este judeu do primeiro século teve a sacada contracultural (tendo em vista as severas interdições judaicas no campo da alimentação) de que só comendo o corpo do outro se opera a fusão completa. Isto ele o faz pouco antes de ser sacrificado.

A lógica do sacrifício visa aplacar a ira de um deus através da morte que restabelece uma condição de normalidade. Na tauromaquia assistimos ao sacrifício do touro, que, morto, não corresponde nenhum perigo a ordem, cuja representação do mal é punida pelo bem. A corrida se desenvolve num ritmo típico que vai da extrema violência em direção a um ambiente mais purificado. A violência bruta do inicio, com o touro estripando os cavalos e recebendo lanças, é seguido pelo segundo estágio, das banderillas que castigam o touro mas agora em tom de ornamento, e finalmente, no último estágio o touro é seduzido e sacrificado dando fim ao elemento torto e consagrando o reto.

Vejo na eucaristia, sobretudo no rito protestante (que acompanhei diversas vezes), esta consagração do reto, esta ação purificadora. Gosto muito da idéia de que no sacrificio do touro, o sacrificador corre risco de morte. Isso me fez entender as ressalvas que são feitas pelo ministrante da eucaristia àqueles que pretendem participar do ato. É uma operação de risco, e risco de morte. Aquele que pretende comer o corpo e beber o sangue do Cristo sacrificado, tem de estar disposto a morrer. Só quem dança com a morte, faz juz à imortalidade.



Ass: Leandro Lança

terça-feira, 21 de junho de 2011

Por que as religiões rígidas prosperam

Por: Judith Shulevitz


Não é coisa fácil explicar porque algumas pessoas submetem-se entusiasticamente à lei religiosa, especialmente quando se está falando com gente que não tem o menor desejo de agir da mesma forma. Por que limitar-se à “teologia do corpo”, como a chamava o papa João Paulo II, quando o controle da natalidade e a pesquisa de células-tronco prometem alívio para duas das mais dolorosas vicissitudes da existência física – a gravidez indesejada e as doenças degenerativas? Porque restringir-se a alimentos kosher, quando o cashrut baseia-se em classificações zoológicas que caducaram milhares de anos atrás?

Entre os não-devotos, uma piedade dessa magnitude é frequentemente vilipendiada como patologia social. Os moderadamente religiosos demonstram mais respeito mas também não ajudam a esclarecer o mistério; eles só balançam a cabeça e dizem, “pra eles acho válido, só não é pra mim”. Nem mesmo os devotos encontraram um modo de comunicar ao resto do mundo o que os atrai numa observância religiosa rígida. Eles só dizem que agem assim porque Deus quer que ajam – argumento que simplesmente não faz sentido para um incrédulo. Ou alegam superioridade moral, coisa que, se você acredita que a moralidade deriva de Deus, é praticamente a mesma coisa que dizer que estão agindo assim porque Deus quer que ajam.

Em geral não se espera que um economista se mostre mais capaz de explicar a religião do que um religioso, mas um economista de fato o fez, utilizando a linguagem amoral da teoria da escolha racional1, que reduz as pessoas a “agentes racionais” que “maximizam a utilidade” – ou seja, gente que age movida apenas por interesse próprio. Em seu ensaio de 1994, Por que as igrejas rígidas prosperam, que se mostraria de grande influência no campo da sociologia da religião, o economista Laurence Iannaccone defende a teoria contra-intuitiva de que as pessoas escolhem as religiões rígidas devido aos benefícios mensuráveis que sua devoção lhes proporciona, não na vida futura, mas aqui e agora.

Iannaccone começa se perguntando por que as pessoas decidem afiliar-se a igrejas rígidas, visto que fazê-lo requer um custo tão alto. Costumes excêntricos são um convite ao ridículo e à perseguição; a participação numa igreja marginal pode limitar as chances de avanço econômico e social; as regras de observância impedem o acesso a prazeres aparentemente inocentes; e a coisa toda requer tempo que poderia ser gasto em diversão ou em aprimoramento pessoal.

De acordo com Iannaccone, o devoto paga esse elevado preço social porque compra com ele um produto religioso de maior qualidade. As normas rígidas desencorajam os aproveitadores, aqueles que minam os esforços do grupo tirando proveito mais do que contribuem. Uma igreja rígida é aquela na qual os membros pouco comprometidos foram eliminados. Aumentar as tarifas para a participação não funciona tão bem quanto aumentar o custo de oportunidade da afiliação, porque tarifas afastam os pobres, que são justamente os que menos têm a perder em doar o seu tempo, e são também os que têm mais incentivo para orar. As tarifas, além disso, encorajam os ricos a substituir devoção por dinheiro.

O que o devoto recebe em troca de todo o seu tempo e esforço? Uma igreja cheia de membros apaixonados; uma comunidade de pessoas profundamente envolvidas nas vidas uns dos outros e mais dispostas do que a maioria a prestar assistência mútua; uma agremiação de pares formada por almas versadas na mesma linguagem (ou linguagens), movidas pelos mesmos textos e acalentadas pelos mesmos sonhos. A religião é uma “‘mercadoria’ que as pessoas produzem coletivamente”, afirma Iannaccone. “Minha satisfação religiosa depende então tanto de meus próprios inputs quando do input dos demais”. Se uma experiência espiritual rica e consistente é o que você busca, uma igreja pentecostal com fachada de loja ou uma sinagoga ortodoxa é provavelmente mais adequada do que uma igreja elegante formada por gente distraída e ambiciosa que mal consegue encontrar uma manhã livre para o culto de domingo, que dizer várias noites livres por semana para estudo bíblico e trabalho voluntário.

A partir de determinado ponto, naturalmente, as desvantagens do fanatismo passam a ultrapassar os benefícios. Uma igreja atinge esse ponto quando se mostra incapaz de oferecer substitutos para tudo aquilo de que pede que seus membros abram mão. Seitas que seduzem seus fiéis para o deserto mas não lhes proveem um meio de subsistência logo desaparecem de cena. Códigos abrangentes de comportamento que isolam as pessoas socialmente – tais como, digamos, o do judaísmo – desaparecem por completo a não ser que se estabeleçam redes que prestem suporte aos seus aderentes. Isso ajuda a explicar, entre outras coisas, porque os judeus que mudaram-se para cidadezinhas do sul [dos Estados Unidos] para abrir mercearias nos séculos XIX e XX, e viveram por décadas sendo as únicas famílias judaicas de suas comunidades, acabaram assimilando a cultura exterior mais do que praticamente todos os judeus ao redor do mundo.

O exemplo que Iannaccone dá de uma igreja cuja postura rígida pode ter saído pela culatra é a igreja católica, que tem tido dificuldade em manter seguidores na Europa e em atrair homens para o sacerdócio na América do Norte. Os tradicionalistas colocam a culpa pelas dificuldades da igreja nas reformas do [Concílio] Vaticano II, a partir do qual a missa começou a ser proferida no vernáculo e padres e freiras despiram suas vestimentas de outro mundo. Os que aspiram por uma reforma colocam a culpa na recusa dos líderes da igreja em ceder à opinião popular a respeito de controle da natalidade, homossexualidade e celibato clerical. Iannaccone afirma que os dois lados estão certos. “A igreja católica pode ter conseguido chegar a uma singularíssima posição de ‘pior-de-dois-mundos’”, ele escreve, “tendo abandonado posturas marcantes e estimadas nas áreas de liturgia, teologia e estilo de vida, e conservando ao mesmo tempo justamente as demandas que seus membros e seu clero mostram-se menos dispostos a aceitar.”

Porém, se códigos rígidos de conduta, judiciosamente aplicados, provam-se uma vantagem no mercado espiritual, faz sentido que os Estados Unidos, um dos poucos países sem uma religião estatal e com um mercado religioso genuinamente aberto, seja berço de tantas variedades de fundamentalismo e de ortodoxia. O crescimento explosivo do conservadorismo cristão, judaico e islâmico e o lento declínio de denominações mais refinadas como o episcopalismo pode representar não o triunfo das forças reacionárias, mas o resultado natural da competição religiosa.

Será consequência necessária da teoria de Iannaccone que os Estados Unidos estejam destinados a serem dominados pela direita religiosa, pelo menos enquanto seus líderes não forem longe demais? Não necessariamente. Suas observações tem mais a ver com o modo como as igrejas funcionam do que com o que advogam. O ponto central reside em que os fiéis anseiam por um comprometimento entusiástico de seus companheiros de adoração – não que os que anseiam por comprometimento pendem para a esquerda ou para a direita.

Reconhecidamente, devoção e ideias absolutistas tendem a andar juntas. É mais fácil aliciar os afiliados de correntes competidoras quando você pode asseverar que seu modo de vida provê acesso exclusivo à verdade. Porém, se o desejo por conexões abundantes e por uma comunidade forte representa mesmo que uma pequena parte da atração de uma vida religiosa rígida, as soluções de Iannaccone para a questão dos aproveitadores podem prover valiosas percepções, mesmo para igrejas e sinagogas menos rigorosas. Ministros metodistas podem permitir-se exigir mais oração e mais trabalho voluntário de seus congregantes. Rabinos do movimento judaico conservador (que são menos rígidos do que os do judaísmo ortodoxo) podem exercer maior pressão para que suas congregações mantenham-se kosher, estudem o Talmude e visitem os enfermos. Não há motivo para que níveis elevados de comprometimento religioso não estejam ligados a teologias liberais ao invés de conservadoras, a posturas de ceticismo e de dúvida ao invés de discursos fundamentalistas, se for nisso que creem e preguem pastores e rabinos. Demandas mais elevadas podem acabar gerando igrejas e sinagogas menores, mas o papa Bento XVI pode ter acertado em cheio quando, ainda cardeal, disse a um jornalista alemão que o futuro da igreja católica está em igrejas menores formadas por seguidores mais dedicados – um cristianismo “caracterizado pela semente de mostarda,” como ele coloca.

O maior obstáculo para essas reformas por parte dos líderes liberais é, naturalmente, a imaginação liberal, que tende a associar ritos tradicionais a uma postura retrógrada, ignorante e de extrema direita. Porém o mundo está repleto de seitas rigorosíssimas com praticantes cuja postura política não se presta a uma categorização fácil. Pense no pacifismo dos quacres, ou no ativismo contra a pena de morte por parte de muitos católicos. Como entenderam os grandes líderes religiosos do mundo, ritual é teatro: você pode usá-lo para passar a mensagem que quiser.


Achado em: http://www.baciadasalmas.com/2011/por-que-as-religioes-rigidas-prosperam/

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Tot e Tamus, entre a escrita e a oralidade

por Leandro Lança

Recentemente a Bráulia Ribeiro, escritora e missionária que adimiro muito escreveu um texto para a revista Ultimato sobre os povos ágrafos (sem escrita) e a missão cristã. Segundo Bráulia, a maior contribuição das missões para a história é a escrita. Ao longo do texto defende que apesar da tradição oral não deixar ninguém mais “burro” a ausência da escrita impede estes povos de fazerem contribuições eficazes para o resto da humanidade, além de ser um impedimento para a constituição e perpetuação de sua própria história. Bráulia vai um pouco além e deixa claro que a oralidade traz uma impossibilidade de se produzir ciência.

Bom, o texto na íntegra pode ser lido neste endereço:

http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/329/escrever-ou-nao-eis-a-questao

Deixo aqui a minha sensível discordância destas idéias da Bráulia. E para isto conto com a contribuição de uma belíssima e esclarecedora história que Sócrates conta no Fedro:


“Na cidade egípcia de Naucratis havia um famoso deus antigo cujo nome era Tot. Naqueles dias o deus Tamus era rei de todo o Egito. A ele veio Tot e mostrou-lhe suas invenções, desejando que os demais egípcios pudessem beneficiar-se delas. Ele enumerou-as todas e Tamus inquiriu a respeito de seus diversos usos, louvando-as e censurando-as à medida em que aprovava ou desaprovava.

Quando chegaram à escrita, Tot disse:

– Isto tornará os egípcios mais sábios e dará a eles memória mais aprimorada; é elixir tanto para a memória quanto para o intelecto.

– Ah, engenhoso Tot – respondeu Tamus, – o pai ou inventor de uma arte não é sempre o melhor juiz da utilidade ou da inutilidade de suas próprias invenções. E neste caso, sendo pai da escrita, por amor paternal você atribuiu a sua filha uma qualidade que ela não possui. Essa sua descoberta fomentará o esquecimento na alma dos aprendizes, porque deixarão de usar suas memórias. A confiança deles na escrita, produzida por caracteres externos que não são parte deles mesmos, irá desencorajá-los a usar a memória que está neles. O elixir que você descobriu promove não a memória, mas a reminiscência. A escrita dará aos seus discípulos não a verdade, mas a aparência da verdade; serão ouvintes de muitas coisas, e terão aprendido coisa alguma; parecerão ser oniscientes, mas se manterão na maior parte ignorantes; serão companhia enfadonha, tendo a aparência de sabedoria sem a realidade.”

Ao ler o texto da Bráulia, acho importante em primeiro lugar desconfiar que a escrita seja mesmo uma grande contribuição, ainda mais, a maior de todas realizadas pelas missões.

A partir desta desconfiança, faz-se necessário desconfiar e problematizar o resto. Será que o domínio do conhecimento oral, e tudo o que isto implica, não foi uma grande pérola desprezada pelos colonizadores em seu ímpeto de levar a escrita aos povos ágrafos como a grande salvação? Será que a oralidade impede contribuições válidas para a humanidade, ou é a humanidade (e seus centros de poder) que nunca quiseram valorizar a oralidade e o conhecimento relativo à ela?
Será que a oralidade não pode ser um baú mais eficaz para a memória? Como jovem ocidental vivenciando o ápice da escritura em tempos de virtualidade, como acreditar nas promessas de Tot, quando tudo e todos ao redor só comprovam a tese de Tamus?

O que salta do texto de Bráulia são utopias modernas, que, sintomáticamente esquecendo-se dos acontecimentos do século passado, permanecem crentes na ciência, na História, no progresso e desenvolvimento tecnológico e econômico, e que, não poderia de ser, ancora-se inalienavelmente em uma sociedade da escritura.

Digo isto, sem deixar de entender o medo que Bráulia transparece no texto de que povos ágrafos fiquem isolados em uma situação de invisibilidade cívil que pode levar à todo tipo de abuso contra estes povos. Porém, entendo que a saída esteja no rebaixamento de nossa arrogância e crença na escrita e não na desvalorização da oralidade que perde seu potencial com a introdução da escrita. Faça a proposta ao “homem civilizado” de abandonar a escrita, será que sua resposta não será idêntica ao do povo da amazônia que vê no abandono da oralidade o deixar de ser quem são?

Como o assunto toca na questão da missão cristã, não poderia terminar sem dúvidar da última senteça da autora. Em sua conclusão, Bráulia dá a entender que a missão da igreja é levar a escrita e a Palavra (Evangelho) aos povos do mundo. O que aprendi na Palavra é que devemos levar sim, o verbo encarnado, quanto à escrita, tenho sérias resalvas.

terça-feira, 3 de maio de 2011

O cristão Nelson Rodrigues

Entrevista de Otto Lara Resende com Nelson Rodrigues, exibida pela TV Globo em 1977.

-Otto: Você tem um sentimento religioso mas que não se definiu na religião, você não é um praticante...

-Nelson: Sou cristão. Profundamente um cristão. Agora, comigo é o seguinte: só entro em igreja vazia. Na minha opinião, os crentes e o padre é o que estragam a missa.

-Otto: Mas como você concilia isto com a sua condição de cristão?

-Nelson: Eu não explico o inexplicável meu caro Otto, Deus não meu deu este dom.




Entrevista na íntegra: http://www.youtube.com/watch?v=bg6CTwVwsss&feature=related

sexta-feira, 29 de abril de 2011

A crença e a asma

Porque toda crença e fidelidade a uma instituição (seja ela qual for) é de fundo "asmático".





segunda-feira, 25 de abril de 2011

A urgência da morte

Por Elienai Cabral Junior http://elienaijr.wordpress.com/


NÃO DEMORA MUITO para que qualquer um descubra a pior das angústias humanas: nossa vida também é morte. Tudo o que amamos, planejamos e construímos é insustentável. Nossas melhores idéias duram tão pouco que a frustração é inevitável. Sonhamos com mundos novos, adrenalizamos a vida idealizando o futuro. Mas conhecemos com desencanto a fatídica fragilização de nossos ideais no desenrolar dos dias, na inclusão de outras pessoas, nas descobertas de novas necessidades e problemas, no adiamento de algumas soluções, nos empenhos inócuos, na convivência com muitas carências e tantos deslizes indesejados. Pouco a pouco, um projeto que nasce vigoroso e carregado de uma sensação de eternidade, por mais belo e consistente, enfraquece e perde gravidade.

Sei que a nostalgia é um sentimento também de auto-engano, pois tudo o que está longe, como o passado, parece melhor do que realmente é ou foi. Mas a nostalgia também é um índice dessa angústia pela insustentável finitude que nos constitui. Sentir nostalgia pelo ponto de partida de qualquer empreendimento é evidência de enfraquecimento, de que não tem mais o mesmo poder de persuasão e encanto. Nostalgia é vertigem pela impotência ante o efêmero. Nossos mecanismos de renovação nada mais são que o sintoma de anemia da idéia inicial. No ambiente da igreja, nossos “anseios por avivamento” confirmam nossa fraqueza. Adélia Prado trata o assunto em sua poesia “Chorinho Doce”:


Eu já tive e perdi
Uma casa,
Um jardim, uma soleira,
O portal,
O jardim mais a casa,
O caixão de janela e aquele rosto de banda.
Tudo impossível,
Tudo de outro dono,
Tudo de tempo e vento.
Então me dá choro, horas e horas.
O coração amolecido como um figo na calda.

Mas uma outra palavra também descreve o modo como nos debatemos existencialmente com a insustentabilidade de nossas construções: instituição. Institucionalização é o processo humano de perpetuação de valores tendo em vista a irresistível contigencialidade da vida. As pessoas mudam. Tudo o que nos cerca muda. O futuro é futuro porque somos temporais, mas também porque somos imprevisíveis. Se fôssemos imutáveis, seres de estabilidade absoluta, além de não sermos humanos nem livres, seríamos seres sem futuro, arremessados a um “eterno agora” entediante. Descortinando com coragem e angústia, o Pregador (Eclesiastes) admite:


“Considere o que Deus fez: Quem pode endireitar o que ele fez torto? Quando os dias forem bons, aproveite-os bem; mas, quando forem ruins, considere: Deus fez tanto um quanto o outro, para evitar que o homem descubra alguma coisa sobre o seu futuro.” (Ec 7.13-14)


“Porquanto há uma hora certa e também uma maneira certa de agir para cada situação. O sofrimento de um homem, no entanto, pesa muito sobre ele, visto que ninguém conhece o futuro. Quem lhe poderá dizer o que vai acontecer? Ninguém tem o poder de dominar o próprio espírito; tampouco tem poder sobre o dia da sua morte e de escapar dos efeitos da guerra; nem mesmo a maldade livra aqueles que a praticam.” (Ec 8.6-8)

Instituir é estabelecer valores acima de nossa inconstância. Instituir é programar o futuro antes que o que aprendemos a amar transforme-se em passado. A forma pactual de se prevenir da nossa instabilidade é normatizar o comportamento de todos. Na institucionalização, diminuímos e enfraquecemos a importância da subjetividade de pessoas livres e a influência das circunstâncias para solidificarmos organismos, materiais ou imateriais, representativos de nossos valores. Aprendemos a amar o Reino de Deus, mas inventamos igrejas para perpetuar nosso amor. Ficamos apaixonados pelo que podemos fazer em defesa de crianças pobres, mas criamos institutos para preservar nossa paixão. Amamos uma pessoa, sonhamos em formar uma família, mas instituímos um casamento para fazer durar nosso amor.

Instituir é programar o futuro antes que o que aprendemos a amar transforme-se em passado.

A imprevisibilidade do comportamento humano é característica de sua finitude. Nós, as coisas que amamos, os eventos que promovemos, todas as nossas construções são finitas. Nós e tudo o que parte de nós morrem. A partir deste fato, convivemos com a vertigem da irresistível contingência de viver. A instituição é um pacto entre mortais em busca de ultrapassar sepulturas. A instituição é a nossa impotente luta contra a morte.

Precisamos falar de morte. Ela é a presença dura de nossa finitude: “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó, e ao pó voltará”. (Gn 3.19) Há um pouco de morte em cada experiência de término ou de limite, em cada derrota, frustração, fadiga, desânimo, doença. No envelhecimento descobrimos um pouco da morte, em cada ruga, em cada nova impossibilidade, em cada memória empalidecida. Mas há as experiências-limite com a morte, aquelas que dela nos avisam com mais força. E aqui há um indicativo precioso, a experiência de rejuvenescimento que se segue a essas experiências-limite. Um acidente automobilístico, uma enfermidade avassaladora, a morte de alguém muito próximo, curiosamente, nos faz melhores. Quem experimenta um pouco da morte melhora, seus valores esquecidos são rememorados, seus afetos embrutecidos são ressensibilizados. Olha com mais cuidado para a vida. Enxerga com mais ternura a outra pessoa. Tolera mais. Apressa-se em superar mesquinharias. A vida é catalisada pela morte. A morte nos aflige, mas nos redime.

A morte carrega um princípio de redenção, portanto. No texto de Gênesis, Deus instaura o fim, estabelece o encerramento da existência humana, com o objetivo, imagino, de impedir que escolhas e ações humanas, se infinitas, tornassem-se prisões, destinos irrevogáveis. “Então disse o SENHOR Deus: ‘Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre’”. (Gn 3.22) Permitam-me os irmãos fundamentalistas, fazer uma leitura literal de Gênesis, mormente os seus primeiros 11 capítulos, é empobrecer a revelação de Deus, além de ingenuidade tola. O Deus da palavra criativa nunca abriu mão da poesia e do simbólico, talvez a única expressão que o revele com graciosidade. Estamos lendo um mito. Deus usou os mitos de uma civilização para impregnar-nos de valores e princípios sublimes. Dentro desse mito revelador, ou insinuante, da criação, arrisco-me a dizer que Deus introduziu a morte na existência humana para impedir-nos de perpetuar o mal. Somos finitos pela misericórdia de Deus. Morremos por socorro divino.

A instituição carrega uma contradição em seu interior. Através dela olhamos com realismo para nossos limites e instabilidades, protegemo-nos de nossa própria maldade. Cuidamos de nossos ideais com responsabilidade. Ampliamos o alcance de nossas conquistas. Isto, a princípio, é belo e bom. Mas, em oposição a este movimento, a instituição também incorpora uma dinâmica maligna. Na instituição somos tentados a substituir a presença pessoal e afetiva por ritos burocráticos. Ao invés de abraços celebrativos, estatutos. Ao invés de ouvidos, o cumprimento cabal de regras. Ao invés da leveza dos sonhos, o peso das obrigações que se multiplicam sem fim. Ao invés de amarmos o ideal, amamos as posições de poder. Ao invés de lutarmos com paixão por um sonho, lutamos com maquiavelismo pelo reconhecimento da razão. Por medo da morte, substituímos a vida pela instituição. Vinicius de Morais percebeu o nossa (não) relação com a morte na poesia A Morte:


A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.

Toda institucionalização é também uma mistificação idolátrica. Damos tamanha importância às nossas instituições que elas terminam divinizadas. Substituímos, assim, os sonhos e anseios que nos moveram a criá-las por elas mesmas. Jesus faz esta denúncia quando responde às críticas dos religiosos por movimentar-se no sábado, curando ou permitindo que seus discípulos comessem: “E então lhes disse: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Assim, pois, o Filho do homem é Senhor até mesmo do sábado”. (Mc 2.27-28)

Morremos por socorro divino.

Se a instituição é o invento organizacional da pessoa humana que, ao reagir à sua finitude, acaba por desumanizar-se, institucionalizando a si mesma e às outras pessoas, a confusão, o desencontro, o desgaste, a crise e conseqüente deconstrução de nossas instituições não poderiam ser o invento redentivo de Deus? O Deus que criou a morte para livrar-nos da perpetuação do mal, também não teria garantido a repercussão da morte, gerando confusão e crise em nossas construções para livrar-nos da institucionalização da vida? Creio que sim.

É aqui que o capítulo 11 de Gênesis colabora com nossa reflexão. Acredito que a narrativa da Construção da Torre de Babel, em sua linguagem mítica, descreve a dinâmica da institucionalização e a reação divina a ela. A unidade fictícia descrita inicialmente é a ocasião para a orquestração de um plano: construir algo tão elevado que garantiria que seus nomes não seriam dispersos sobre a terra. Deus discerne o movimento maligno por trás da construção e promove confusão. Na confusão o projeto é esvaziado, a ficção é descoberta. No desencontro entre subjetividades, intensificado pela ampliação da liberdade e individualidade das pessoas, Deus livrou-os de perpetuarem o mal em sua instituição-construção. A pessoa humana instituiu, Deus babelizou. A pessoa humana organizou para perpetuar-se cruelmente, Deus confundiu para pulverizar graciosamente a perversidade.

Gianni Vattimo propõe a secularização como uma nova kenosis de Deus. A secularização que fez desmoronar a pretensão da religião de ser porta-voz da verdade última realizou no cristianismo o que Deus fez consigo mesmo. O cristianismo sem a secularização e sua marginalização da vida religiosa barbarizou em nome de Deus. A igreja secularizada precisou reaprender o caminho da humildade e da conversa. A igreja pós-secularização foi devolvida inadvertidamente ao caminho do amor.

Deus se esvaziou (kenosis) e se humanizou, serviu-nos como um de nós (Fl 2.5-8). E como um de nós, ensinou-nos também a morrer. Quem se esvaziou para se tornar gente e se humanizou ao limite da morte, concluiu sua trajetória gloriosamente, com um nome que é sobre todo nome: Jesus. A secularização, fenômeno social decorrente do iluminismo, racionalismo, industrialização e cientificismo, que destituiu a igreja-instituição do horizonte último de legitimidade da vida, tornou-se graciosamente a oportunidade de, esvaziada, a igreja reaprender o caminho do amor e da morte redentora.

Assistimos, hoje, a bagatelização de um movimento que já foi caro: o evangelicalismo. Ser evangélico, hoje, é ser confundido com o fundamentalismo religioso que legitimou a barbárie norte-americana no Iraque. Ser evangélico, hoje, é ser associado ao enriquecimento com o uso da religião. Ser evangélico, hoje, é participar do que há de mais sofisticado no mercadejamento da fé. O evangelicalismo brasileiro tem mais a marca de politiqueiros inescrupulosos que de santos e devotos. A cor e o som do movimento evangélico são tão artificiais quanto o que transmitem os comunicadores da televisão, cheios de cacoetes ensaiados e jargões vazios. No meio de tudo isso há um remanescente. Há “sete mil que não dobraram os joelhos”. Mas nem estes nem o passado heróico do evangelicalismo justificam qualquer insistência com um movimento que precisa morrer.

A pulverização dos ideais cristãos no movimento evangélico pode ser uma nova kenosis de Deus. Quem sabe Deus não está babelizando nossa construção evangélica para nos livrar da perpetuação do mal. Quem sabe esta confusão evangélica, em que não mais conseguimos nos identificar, não seja o esvaziamento que nos devolverá ao caminho do amor? Precisamos renovar nosso olhar para o Cristo de Deus, prestar atenção no despojamento divino em fazer-se gente e acolher a morte redentora. Se Deus se esvaziou sendo Deus, como recusar o esvaziamento de nossas instituições, pretensas divindades? Se quem era escolheu deixar de ser, nós que não somos que outra opção mais legítima podemos ter? Adélia Prado conclui com poesia o que eu não consegui com dissertação, “Fé”:


Uma vez, da janela,
vi um homem que estava prestes a morrer,
comendo banana amassada.
A linha do seu queixo era já de fronteiras,
mas ele não sabia, ou sabia?
Como posso saber?
Comia, achando gostoso,
me oferecendo corriqueiro, todavia
inopinado perguntou – ou perguntou comum como das outras vezes?
Como será a ressurreição da carne?
É como nós já sabemos, eu lhe disse,
tudo como é aqui, mas sem as ruindades.
Que mistério profundo!, ele falou
e falou mais, graças a Deus,
pousando o prato.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Arte traumática em Cildo Meireles

Por Leandro Lança




Há trabalhos em arte que transmitem mensagens herméticas, pouco claras, verdadeiros enigmas, e há outros que, propositalmente se revelam ao receptor de forma límpida, quase beirando ao óbvio. Paradoxalmente, escrever sobre os primeiros acaba tornando-se fácil pela abertura às abstrações e múltiplos paradigmas em que podem ser abordados, já os últimos, por serem claros demais, demandam maior esforço, pedem ao que escreve tarefa semelhante a “tirar leite de pedra”. Cildo Meireles tem esta opinião, e no filme Cildo (2009), dirigido por Gustavo Moura, confessa ter pena de quem escreve sobre os seus trabalhos, pelo fato de todos serem muito diretos e claros. A despeito desta dificuldade, resolvi escrever um pouco sobre três trabalhos do artista que estão interligados e talvez sejam os mais diretamente claros neste sentido. São eles: Sal sem Carne (1975), Olvido (1987-1989) e Missão-Missões: Como Construir Catedrais (1987).

Muitos trabalhos de Cildo nascem a partir de acontecimentos que marcaram a vida do artista e se negaram evadir-se de sua memória. Sal sem Carne é um bom exemplo. As questões indígenas no Brasil marcaram profundamente a infância de Cildo Meireles. Seu pai, funcionário da Fundação Nacional do Índio, acompanhou de perto a chacina que dizimou cerca de quatro mil índios Krahó, primeiro pela disseminação do vírus da gripe, e posteriormente na década de 40, por um massacre comandado por fazendeiros. Nesta ocasião o pai do artista abriu um processo judicial contra os mandantes do crime, que até hoje é tido como um dos primeiros processos judiciais no Brasil contra assassinato de uma comunidade indígena. O processo resultou em perseguição a sua pessoa, culminando em sua demissão, o que deixou a família em uma difícil situação financeira. As marcas que essa história deixou na infância de Cildo e que ele carrega consigo emergiram mais tarde em Sal sem Carne.

A obra se revela em um disco de vinil com gravações realizadas pelo artista em forma de registro em 1974 com alguns poucos remanescentes da aldeia e língua Krahó. Um dos sobreviventes narra o massacre no disco que, ainda contém sons de missas e procissões que são intercaladas a sons de musicas de festas rituais indígenas. O disco ainda acompanha mais de cem fotografias apresentadas em visores de slides. Para além desta relação pessoal do autor com a realidade retratada, este trabalho fala da relação histórica entre colonizador e colonizado, relação conflituosa com suas características habituais que envolvem massacres, pilhagem, roubo, e todo tipo de desrespeito e extermínio de alteridades. Como uma espécie de espectro não exorcizado, ou trauma não resolvido, este tema retornará na obra de Cildo doze anos depois com Missão-Missões: Como Construir Catedrais.

O trabalho que se assemelha a uma construção arquitetônica, possui um piso quadrado de 4m por 4m com 600 mil moedas que é ligado a um teto feito de 2 mil ossos, interligados por uma coluna central feita com 800 hóstias. Cildo geralmente utiliza materiais que tenham uma alta carga simbólica e em muitos trabalhos o artista se vale do excesso de acumulo destes materiais. Esta característica aparece, por exemplo, em: “Fontes”, com seus mil relógios eletrônicos, uma torre de rádios em “Babel”, uma coleção de objetos vermelhos em “Desvio para o Vermelho”, mais de duzentas bolas em “Glove Trotter”, entre outros. O próprio acúmulo de materiais simbólicos acaba se tornando outro elemento simbólico na obra. Assim como em Babel, cada rádio se torna metáfora de uma cultura e sua respectiva língua, em Missão-Missões, o grande número de ossos, hóstias e moedas, é significativo em relação aos massacres, catequizações e exploração econômica em larga escala.

Através de uma síntese clara entre três elementos simbólicos, o artista consegue nos mostrar as estruturas do empreendimento colonial realizado pelas Missões Jesuíticas no século XVII, no Brasil, Paraguai e Argentina. Cildo diz que o trabalho pode ser entendido pela seguinte fórmula: Poder econômico + Poder Religioso = Tragédia.

Ainda em 1987, Cildo dá inicio a Olvido, outro trabalho ligado à questão indígena, mais especificamente sobre o encontro entre estas civilizações e a civilização européia e a assimetria de poder envolvido neste encontro. Cildo constrói uma tenda indígena recoberta com cédulas de diversos países da América Latina em que populações nativas foram dizimadas. Ao redor desta tenda foram espalhadas cerca de três toneladas de ossos, dispostos num círculo, que, por sua vez, é cercado por um muro feito de setenta mil velas. Análogo a Missão-Missões, temos o acumulo de materiais carregados de simbolismo, mas aqui, dispostos de maneira diferente. Se a estrutura quadrada de um nos remete à fundação de catedrais, o circulo formado em Ouvido parece nos remeter a uma espécie de ritual fúnebre ou sacrificial. Ossos e dinheiro estão cercados por velas que, se por um lado podem representar uma fogueira, de outro podem fazer alusão ao hábito cristão de acender velas para santos e mortos. O trabalho ainda contém um elemento sonoro bem sugestivo. Meio que emergindo do centro da tenda, pode-se ouvir o som de motosserras em ação constante, que segundo Paulo Herkenhoff: “

(...) indica o incansável, terrível labor da destruição que, sem interrupção, vem do passado colonial ao presente capitalista”. (HERKENHOFF, 1999)

Creio que estes trabalhos citados se encaixam na categoria de arte traumática formulada por Hal Foster, em “O Retorno do Real”. Ao analisar o traumático em Andy Warhol, o autor avalia o método de repetição do artista sobre vários aspectos. A repetição de um evento traumático como forma de incorporá-lo à economia psíquica, tal como formulado por Freud; a repetição não como controle do trauma, mas como fixação obsessiva no objeto de melancolia; a repetição como proteção do real, como drenagem do significado, ou como estratégia de revelação das estruturas que compõem o trauma via o exagero. A partir do trauma coletivo da colonização e do trauma individual vivenciado por Cildo em seu contato com a realidade indígena muito cedo, vejo a metodologia do acúmulo nesta série de trabalhos, com efeitos parecidos ao da repetição analisados por Hal Foster. Ao mesmo tempo em que o acúmulo de elementos simbólicos do trauma pode funcionar como reprodução de uma realidade espectral, pode esvaziar estes elementos de seu real significado, pois como revela Andy Warhol: “quanto mais se olha para exatamente a mesma coisa, tanto mais ela perde seu significado, e nos sentimos cada vez melhor e mais vazios”.


Segundo o crítico e curador Agnaldo Farias:

“A carreira de Cildo Meireles é pontuada por uma dupla denúncia: dos limites do circuito artístico, enredado nas malhas da sociedade, como instância de neutralização do efeito liberador da arte; e de aspectos diversos do capitalismo”. (FARIAS, 2002)

Se nestes trabalhos apresentados não temos uma crítica direta ao sistema da arte, temos bons exemplos da capacidade que Cildo Meireles tem de expor as estruturas, contradições e rachaduras no sistema capitalista (neste caso de exploração econômica colonial) de forma simples, direta, e não menos impactante ou instigante.



Bibliografia:

HERKENHOFF, Paulo. In Cildo Meireles. São Paulo.Ed, Cosac & Naify.1999.

FOSTER, Hal, O Retorno do Real. Londres: MIT Press, 1996.

FARIAS, Agnaldo. Arte Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2002.

FILME: CILDO, Direção: Gustavo Rosa de Moura. Prod. MATIZAR, 2009

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Resista à tentação de pertencer a um grupo

Por Augusto de Franco

Em geral as pessoas estão acostumadas a interagir em espaços proprietários (fechados), não em redes (abertas). Não estão abertas à interação com o que chamei de outro-imprevisível. Por isso fazem escolas, erigem igrejas, urdem corporações e partidos e servem à instituições hierárquicas (sejam sociais, estatais ou empresariais). E, às vezes, seu quadradinho é um espaço proprietário virtual, um blog ou uma página no Facebook.

Mesmo quando se aventuram a fazer redes, as pessoas, em geral, organizam grupos proprietários, estabelecem contextos que separam quem está dentro de quem está fora, criam sulcos que acabam disciplinando a interação por meio de regras (muitas vezes tácitas, mas não por isso menos efetivas), de um glossário próprio (pelo qual ressignificam os termos que usam recorrentemente gerando algum tipo de jargão) não importando para nada se esta “wikipédia” (ou “contextopedia”) privada está ou não publicada em um site aberto ou fechado; enfim, fazem tudo para promover o seu grupo – às vezes chamado de comunidade – à condição de instância mais estratégica do que as demais (os outros ambientes em que interagem, inclusive as mídias sociais onde se registram). Este é um dos motivos pelos quais sua interação nesses outros ambientes é, em geral, tão pouco intensa ou tão pouco frequente. Pudera! Seu tempo está tomado pelo seu próprio grupo (seja uma organização da sociedade formal ou informal, seja um órgão estatal, seja uma empresa).

E o mais interessante é que, muitas vezes, essas pessoas estão convencidas intelectualmente de que devem se organizar em rede. Não raro denominam de redes suas organizações hierárquicas ou seus grupos proprietários. Não estão – em sua maioria – mentindo ou fazendo propaganda enganosa. Elas acreditam mesmo que suas organizações sejam redes, desde que seus membros estejam convencidos (ou “tenham consciência”) de que agora entramos na era das redes (por algum motivo elas acham que consciência é algo capaz de determinar comportamentos coletivos).

Chega a ser fascinante observar como essas pessoas não conseguem viver fora do seu quadrado. E como racionalizam tal aprisionamento lançando mão das mais variadas teorias sociológicas sobre grupos (a sociologia vem aqui, não raro, como um socorro contra a política, como uma proteção contra a experiência direta de uma política não-autocrática). Ah! é difícil, como é difícil se atirar na correnteza quando é tão mais fácil construir diques e ficar boiando na tranquilidade da represa!

Pois bem. Tudo isso – que já foi dito e repisado, por mim e por outros, nos últimos dois anos – me leva agora a refletir sobre o seguinte: se quiserem realmente tecer redes as pessoas não devem se agregar a outras pessoas em grupos proprietários, comunidades exclusivas, inner circles, bunkers para se proteger do mundo exterior ou outras formas de organização constituídas na base do “cada um no seu quadrado”. Sim, pode parecer surpreendentemente contraditório, à primeira vista, dizer o que vou dizer agora:

Se você quer fazer redes, resista a tentação de pertencer a um grupo.

Se você se deixa capturar por um grupo ou se põe a capturar outras pessoas para um grupo (que seja considerado – ou funcione como, dá no mesmo – o seu grupo), então você terá imensas dificuldades de interagir em rede de modo mais distribuído do que centralizado. Se você quer, porque acha que precisa, porque sente, às vezes desesperadamente, a vontade de se juntar a outras pessoas para executar algum projeto coletivo, compartilhar com elas suas ideias, seus sonhos (e também suas ansiedades), somar esforços, apoiar e receber apoio praticando a ajuda-mútua dentro de um campo de cumplicidade, enfim, constituir um grupo e coesioná-lo a partir de uma visão comum, de um “falar a mesma língua”, de uma sintonia fina de sentimentos e emoções, então se prepare para fazer o mais difícil: matar essa vontade!

Simplesmente mate essa vontade. Se preciso, vá para o deserto e passe um tempo lá. Se você já está conectado a outras pessoas, por que diabos quer também forçar uma clusterização que selecionará a priori algumas conexões como mais fortes do que outras, alguns caminhos como mais válidos do que outros, alguns planos feitos intra muros (quer dizer, dentro daquele clusterzinho que foi urdido antes da interação) como mais estratégicos do que outros?

Não há qualquer problema em se reunir com muitos grupos para propósitos diversos, públicos ou privados, interagir em vários aglomerados, atuar coletivamente em várias instâncias. O problema só surge quando você faz tudo isso não a partir de você mesmo, mas sempre a partir de um grupo que encara os demais ambientes coletivos como campo de atuação (e uma atuação inevitavelmente tática, mesmo quando você proteste o contrário) desse grupo.

Trabalhar em rede distribuída é diferente de trabalhar num grupo proprietário, numa organização nuclear que compartilha uma visão comum e exige essa visão comum para continuar interagindo. Na verdade, o problema está na construção de mundos baseados na participação.

Portanto, se você quer experimentar redes (mais distribuídas do que centralizadas), nada de grupo participativo, nada de chegar a algum formato com base em participação. Redes não são ambientes de participação e sim de interação. Não temos que decidir o que todos farão em bloco. Vamos interagir e ver o que acontece. O formato final de qualquer ação coletiva será sempre uma combinação fractal, emergente, de certo modo inédita e imprevisível, das contribuições de cada um.

Em outras palavras, se você quer fazer redes não pode esquecer jamais uma coisa: você é uma pessoa. Paulo Brabo (2007), em um texto que não me canso de citar, escreveu assim:

A primeira coisa a fazer, se você ainda não fez, é desiludir-se por completo de todas as iniciativas comunitárias ou governamentais, por mais bem intencionadas que sejam, e raramente são. Esqueça, meu caro discípulo, o coletivo. A salvação não virá de ongs ou ogs, Gogues ou Magogues, poderes ou potestades. A salvação não virá de igrejas, assembleias, organizações de bairro, sindicatos, asilos, orfanatos ou campanhas de assistência. As ongs têm a tremenda virtude de não serem governamentais, mas contam com a imperdoável falha de serem organizações. Repita comigo: as instituições não existem. Só existem pessoas.

É claro que é necessário entender o contexto confessional (ou teologal) em que Brabo escreveu sua bela homilia herética e fixar-se nas suas mensagens centrais: desiluda-se por completo das iniciativas comunitárias, esqueça o coletivo, reconheça a imperdoável falha das organizações (aquela que deriva do fato de serem organizações) e convença-se de que as instituições não existem: só existem pessoas.

Fale como uma pessoa. Seja uma pessoa. Não aja como se fosse um grupo, um projeto, uma organização (nem mesmo tuite como se fosse uma coletividade abstrata). Uma pessoa jurídica é uma pessoa imaginária (ou seja, uma não-pessoa). A vida gastou 3,9 bilhões de anos e as coletividades humanas formadas pela convivência gastaram uns 300 mil anos para constituírem essa tão surpreendente quanto improvável realidade que somos (o humano, a pessoa: o encontro fortuito do simbionte natural em evolução com o simbionte social em prefiguração) e na hora em que vamos nos apresentar a alguém, sobretudo a alguma coletividade, temos vergonha de dizer que somos “apenas” uma pessoa e preferimos declarar que estamos representando alguma dessas organizações vagabundas que, em média, não conseguem sobreviver mais do que poucos anos e que, além de tudo, são não-humanas, quando não desumanas.

Mas… atenção! Pessoa não é o mesmo que a abstração chamada indivíduo. Redes sociais não são redes de indivíduos e sim de pessoas. O conjunto dos pensionistas do previdência social não constitui uma rede social, assim como não constitui uma rede social a população de um país. O social, como sempre dizemos, não é a coleção dos indivíduos e sim as configurações móveis geradas a partir do que ocorre entre eles (que, então, deixam de ser indivíduos para passar a ser pessoas). Quando interagimos, tornamos-nos pessoas. Assim, pessoa já é rede.

Se você não tem liberdade para interagir nos seus próprios termos, como uma pessoa, se você diz: “vou consultar primeiro meu chefe ou meus companheiros” antes de decidir sobre isso ou aquilo, então sua porção-borg cresce e sua porção-social diminui. Em outras palavras, sua porção-rebanho cresce e sua porção-pessoa diminui. Em outras palavras, ainda: você perde um pouco daquela qualidade da alma que chamamos de humanidade.

Se você se define como participante de qualquer grupo, quer dizer, restringe suas possibilidades de interagir para se enquadrar nos termos já estabelecidos por outrem (ou, até, por você mesmo, porém antes da interação), então você terá muitas dificuldades de entender, experimentar e atuar em rede (distribuída).

Toda realização em rede distribuída é um projeto que vai se construindo à medida que avança, que vai se formando ao sabor de fluzz, que vai gerando ordem a partir – e no ritmo – da interação. Em tal contexto é desnecessário, a rigor, combinar antes o script. É inútil – e frequentemente contraproducente – mobilizar energia para direcionar um grupo.

Se você quer fazer redes, nada de formar uma comunidade que vá além do seu propósito específico e declarado (como se fosse um comunidade de destino). Não existe ‘a’ comunidade: existem múltiplas, diversas, comunidades. Se você acha que existe aquela comunidade que é ‘a’ comunidade (porque é “a sua”, a escolhida, a predestinável), é sinal de que você se deixou aprisionar por um grupo (às vezes uma prisão que você mesmo engendrou). E aí não vão tardar a surgir aquelas manifestações horríveis de pertencimento exclusivo, de fidelidade… Mesmo que você aceite o direto de uma pessoa de abandonar uma comunidade, isso não basta. É necessário aceitar o direito de uma pessoa de pertencer a várias comunidades ao mesmo tempo! Ou seja, é necessário desconstituir a cultura (ou quebrar a linha de transmissão de comportamento) do “cada um no seu quadrado”.

Você já notou que este direito não é reconhecido nas organizações hierárquicas, mesmo nas privadas, como os partidos e as empresas? Nas empresas esse direito só existe para os donos ou acionistas. Quando lhe pagam um salário, é como se dissessem: “comprei você e agora você é meu; nada de transar fora do meu quadrado”.

Se você quer fazer redes, nada de alinhar visões. Na maioria das organizações burocráticas, sejam sociais, empresariais ou governamentais, o tempo das pessoas é gasto em reuniões para alinhamento (ou seja, agrupamentos forçados para discutir como realizar melhor as diretivas estabelecidas por cima ou por fora da sua interação). Mal saem de uma reunião os “colaboradores” (um eufemismo empresarial para empregados, quer dizer, subordinados) já entram em outra reunião. E assim passam o dia: entre o computador, o banheiro, o café e as indefectíveis reuniões. Revela-se óbvio o motivo de tais reuniões: são ambientes de direcionamento voltados à reprodução de comportamentos, são campos de adestramento, são artifícios para proteger as pessoas da experiência de empreender, de criar, de inovar.

Se você quer fazer redes, nada de virar escola, nem mesmo escola de pensamento. As comunidades ditas de livre adesão, em sua maioria, são algum tipo de escola de pensamento, ou de igreja, ou de corporação, ou de partido, ou de alguma coisa que exija que você adote e professe uma visão coletivamente construída para pertencer ao grupo e poder falar em seu nome. Mas se você quer fazer redes, nada de criar coesões que separem os de dentro dos de fora.

Estar em rede é sempre uma aposta: a aposta de que da nossa interação desorganizada vai surgir algo interessante, não antes, no ensaio (“a vida é beta”, como diz o Silvio Meira), mas sobretudo ali, na hora exata em que ocorre, bottom up.


Augusto de Franco é o criador e um dos netweavers da Escola-de-Redes - uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias de netweaving (com 5.959 conectados em 27/02/11) e da empresa-em-rede chamada Netweaving HCW. É autor de mais de duas dezenas de livros sobre desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais, como Alfabetização Democrática (2007), Novas Visões sobre a Sociedade, o Desenvolvimento, a Internet, a Política e o Mundo Glocalizado (2008), Tudo que é sustentável tem o padrão de rede (2008), Dez escritos sobre redes sociais (2010). Trabalha atualmente no seu novo livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio.)