quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Escrita não-criativa


Trecho do livro Uncreative Writing, de Kenneth Goldsmith, que será publicado em setembro nos EUA.



Há aproximadamente um século, o mundo da arte deu um fim às noções convencionais de originalidade e replicação com os readymades de Marcel Duchamp, os desenhos mecânicos de Francis Picabia e o muito citado ensaio de Walter Benjamin, A Obra de Arte na Era da Reprodução Mecânica. Desde então, um cortejo de artistas blue chip, de Andy Warhol a Matthew Barney, levou essas ideias para novos patamares, resultando em noções muito complexas de identidade, mídia e cultura. Isso se tornou de tal forma parte integrante do discurso mainstream do mundo da arte, que reações contrárias, baseadas no genuíno e na representação, emergiram. De forma semelhante, na música, o sampling – faixas inteiras compostas a partir de outras faixas – tornou-se lugar-comum. Do Napster aos jogos de computador, do karaokê aos arquivos torrent, a cultura parece estar adotando o digital e toda a complexidade que ele envolve, com exceção da escrita, que ainda é majoritariamente comprometida com a promoção de uma identidade autêntica e estável a todo custo.

Não estou dizendo que esse tipo de escrita deve ser descartado: quem nunca se emocionou com um grande livro de memórias? Mas sinto que a literatura – infinita no seu potencial de tipos de expressão – está em ponto morto, tendendo a bater na mesma tecla repetidas vezes, limitando-se ao mais estreito dos espectros, o que resulta em uma prática que perdeu o passo e é incapaz de tomar parte daquele que é, sem dúvida, o debate cultural mais vital e excitante do nosso tempo. Acho que este é um momento muito triste – e uma grande oportunidade perdida para a criatividade literária revitalizar-se de maneiras que não se tenha imaginado.

Talvez uma razão para a escrita estar emperrada pode ser o modo como a escrita criativa é ensinada. Em relação a muitas ideias sofisticadas sobre mídia, identidade e sampleagem desenvolvidas ao longo do século passado, os livros sobre como ser um escritor criativo perderam completamente o rumo, confiando em noções estereotipadas do que significa ser "criativo". Esses livros são temperados com conselhos do tipo "um escritor criativo é um explorador, um inovador. A escrita criativa permite-lhe traçar o seu próprio caminho e ir audaciosamente até onde ninguém jamais foi". Ou, ignorando gigantes como De Certeau, Cage e Warhol, sugerem que "a escrita criativa é a libertação das limitações impostas pela vida cotidiana"(1). No início do século 20, Duchamp e o compositor Erik Satie manifestaram o desejo de viver sem memória. Para eles, era uma maneira de estar atento para as maravilhas do dia a dia. No entanto, parece que cada livro sobre escrita criativa insiste em que "a memória é muitas vezes a principal fonte de experiência imaginativa". Acho as seções "como fazer" desses livros extremamente vulgares, coagindo-nos, em geral, a priorizar o dramático em detrimento do mundano, como base para nossos escritos: "usando o ponto de vista na primeira pessoa, explica-se como um homem de 55 anos se sente no dia do seu casamento. É o seu primeiro matrimônio". Prefiro as ideias de Gertrude Stein, que, escrevendo na terceira pessoa, fala de sua insatisfação com esse tipo de técnicas: “Ela experimentou de tudo na tentativa de descrever. Tentou um pouco inventar palavras, mas logo desistiu. O inglês era o seu meio e, com a língua inglesa, a tarefa era para ser feita e o problema resolvido. O uso de palavras inventadas ofendeu-a, era uma fuga para o sentimentalismo imitativo”(2).



(Tradução: Giselle Beiguelman)

1. Laurie Rozakis, The Complete Idiot’s Guide to Creative Writing (New York: Alpha, 2004), p. 136.

2. Gertrude Stein, The Autobiography of Alice B. Toklas (New York: Vintage, 1990), p. 119


Fonte: www.select.art.br

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