sexta-feira, 29 de abril de 2011

A crença e a asma

Porque toda crença e fidelidade a uma instituição (seja ela qual for) é de fundo "asmático".





segunda-feira, 25 de abril de 2011

A urgência da morte

Por Elienai Cabral Junior http://elienaijr.wordpress.com/


NÃO DEMORA MUITO para que qualquer um descubra a pior das angústias humanas: nossa vida também é morte. Tudo o que amamos, planejamos e construímos é insustentável. Nossas melhores idéias duram tão pouco que a frustração é inevitável. Sonhamos com mundos novos, adrenalizamos a vida idealizando o futuro. Mas conhecemos com desencanto a fatídica fragilização de nossos ideais no desenrolar dos dias, na inclusão de outras pessoas, nas descobertas de novas necessidades e problemas, no adiamento de algumas soluções, nos empenhos inócuos, na convivência com muitas carências e tantos deslizes indesejados. Pouco a pouco, um projeto que nasce vigoroso e carregado de uma sensação de eternidade, por mais belo e consistente, enfraquece e perde gravidade.

Sei que a nostalgia é um sentimento também de auto-engano, pois tudo o que está longe, como o passado, parece melhor do que realmente é ou foi. Mas a nostalgia também é um índice dessa angústia pela insustentável finitude que nos constitui. Sentir nostalgia pelo ponto de partida de qualquer empreendimento é evidência de enfraquecimento, de que não tem mais o mesmo poder de persuasão e encanto. Nostalgia é vertigem pela impotência ante o efêmero. Nossos mecanismos de renovação nada mais são que o sintoma de anemia da idéia inicial. No ambiente da igreja, nossos “anseios por avivamento” confirmam nossa fraqueza. Adélia Prado trata o assunto em sua poesia “Chorinho Doce”:


Eu já tive e perdi
Uma casa,
Um jardim, uma soleira,
O portal,
O jardim mais a casa,
O caixão de janela e aquele rosto de banda.
Tudo impossível,
Tudo de outro dono,
Tudo de tempo e vento.
Então me dá choro, horas e horas.
O coração amolecido como um figo na calda.

Mas uma outra palavra também descreve o modo como nos debatemos existencialmente com a insustentabilidade de nossas construções: instituição. Institucionalização é o processo humano de perpetuação de valores tendo em vista a irresistível contigencialidade da vida. As pessoas mudam. Tudo o que nos cerca muda. O futuro é futuro porque somos temporais, mas também porque somos imprevisíveis. Se fôssemos imutáveis, seres de estabilidade absoluta, além de não sermos humanos nem livres, seríamos seres sem futuro, arremessados a um “eterno agora” entediante. Descortinando com coragem e angústia, o Pregador (Eclesiastes) admite:


“Considere o que Deus fez: Quem pode endireitar o que ele fez torto? Quando os dias forem bons, aproveite-os bem; mas, quando forem ruins, considere: Deus fez tanto um quanto o outro, para evitar que o homem descubra alguma coisa sobre o seu futuro.” (Ec 7.13-14)


“Porquanto há uma hora certa e também uma maneira certa de agir para cada situação. O sofrimento de um homem, no entanto, pesa muito sobre ele, visto que ninguém conhece o futuro. Quem lhe poderá dizer o que vai acontecer? Ninguém tem o poder de dominar o próprio espírito; tampouco tem poder sobre o dia da sua morte e de escapar dos efeitos da guerra; nem mesmo a maldade livra aqueles que a praticam.” (Ec 8.6-8)

Instituir é estabelecer valores acima de nossa inconstância. Instituir é programar o futuro antes que o que aprendemos a amar transforme-se em passado. A forma pactual de se prevenir da nossa instabilidade é normatizar o comportamento de todos. Na institucionalização, diminuímos e enfraquecemos a importância da subjetividade de pessoas livres e a influência das circunstâncias para solidificarmos organismos, materiais ou imateriais, representativos de nossos valores. Aprendemos a amar o Reino de Deus, mas inventamos igrejas para perpetuar nosso amor. Ficamos apaixonados pelo que podemos fazer em defesa de crianças pobres, mas criamos institutos para preservar nossa paixão. Amamos uma pessoa, sonhamos em formar uma família, mas instituímos um casamento para fazer durar nosso amor.

Instituir é programar o futuro antes que o que aprendemos a amar transforme-se em passado.

A imprevisibilidade do comportamento humano é característica de sua finitude. Nós, as coisas que amamos, os eventos que promovemos, todas as nossas construções são finitas. Nós e tudo o que parte de nós morrem. A partir deste fato, convivemos com a vertigem da irresistível contingência de viver. A instituição é um pacto entre mortais em busca de ultrapassar sepulturas. A instituição é a nossa impotente luta contra a morte.

Precisamos falar de morte. Ela é a presença dura de nossa finitude: “Com o suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado; porque você é pó, e ao pó voltará”. (Gn 3.19) Há um pouco de morte em cada experiência de término ou de limite, em cada derrota, frustração, fadiga, desânimo, doença. No envelhecimento descobrimos um pouco da morte, em cada ruga, em cada nova impossibilidade, em cada memória empalidecida. Mas há as experiências-limite com a morte, aquelas que dela nos avisam com mais força. E aqui há um indicativo precioso, a experiência de rejuvenescimento que se segue a essas experiências-limite. Um acidente automobilístico, uma enfermidade avassaladora, a morte de alguém muito próximo, curiosamente, nos faz melhores. Quem experimenta um pouco da morte melhora, seus valores esquecidos são rememorados, seus afetos embrutecidos são ressensibilizados. Olha com mais cuidado para a vida. Enxerga com mais ternura a outra pessoa. Tolera mais. Apressa-se em superar mesquinharias. A vida é catalisada pela morte. A morte nos aflige, mas nos redime.

A morte carrega um princípio de redenção, portanto. No texto de Gênesis, Deus instaura o fim, estabelece o encerramento da existência humana, com o objetivo, imagino, de impedir que escolhas e ações humanas, se infinitas, tornassem-se prisões, destinos irrevogáveis. “Então disse o SENHOR Deus: ‘Agora o homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não se deve, pois, permitir que ele tome também do fruto da árvore da vida e o coma, e viva para sempre’”. (Gn 3.22) Permitam-me os irmãos fundamentalistas, fazer uma leitura literal de Gênesis, mormente os seus primeiros 11 capítulos, é empobrecer a revelação de Deus, além de ingenuidade tola. O Deus da palavra criativa nunca abriu mão da poesia e do simbólico, talvez a única expressão que o revele com graciosidade. Estamos lendo um mito. Deus usou os mitos de uma civilização para impregnar-nos de valores e princípios sublimes. Dentro desse mito revelador, ou insinuante, da criação, arrisco-me a dizer que Deus introduziu a morte na existência humana para impedir-nos de perpetuar o mal. Somos finitos pela misericórdia de Deus. Morremos por socorro divino.

A instituição carrega uma contradição em seu interior. Através dela olhamos com realismo para nossos limites e instabilidades, protegemo-nos de nossa própria maldade. Cuidamos de nossos ideais com responsabilidade. Ampliamos o alcance de nossas conquistas. Isto, a princípio, é belo e bom. Mas, em oposição a este movimento, a instituição também incorpora uma dinâmica maligna. Na instituição somos tentados a substituir a presença pessoal e afetiva por ritos burocráticos. Ao invés de abraços celebrativos, estatutos. Ao invés de ouvidos, o cumprimento cabal de regras. Ao invés da leveza dos sonhos, o peso das obrigações que se multiplicam sem fim. Ao invés de amarmos o ideal, amamos as posições de poder. Ao invés de lutarmos com paixão por um sonho, lutamos com maquiavelismo pelo reconhecimento da razão. Por medo da morte, substituímos a vida pela instituição. Vinicius de Morais percebeu o nossa (não) relação com a morte na poesia A Morte:


A morte vem de longe
Do fundo dos céus
Vem para os meus olhos
Virá para os teus
Desce das estrelas
As loucas estrelas
Trânsfugas de Deus
Chega impressentida
Nunca inesperada
Ela que é na vida
A grande esperada!
A desesperada
Do amor fratricida
Dos homens, ai! dos homens
Que matam a morte
Por medo da vida.

Toda institucionalização é também uma mistificação idolátrica. Damos tamanha importância às nossas instituições que elas terminam divinizadas. Substituímos, assim, os sonhos e anseios que nos moveram a criá-las por elas mesmas. Jesus faz esta denúncia quando responde às críticas dos religiosos por movimentar-se no sábado, curando ou permitindo que seus discípulos comessem: “E então lhes disse: O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado. Assim, pois, o Filho do homem é Senhor até mesmo do sábado”. (Mc 2.27-28)

Morremos por socorro divino.

Se a instituição é o invento organizacional da pessoa humana que, ao reagir à sua finitude, acaba por desumanizar-se, institucionalizando a si mesma e às outras pessoas, a confusão, o desencontro, o desgaste, a crise e conseqüente deconstrução de nossas instituições não poderiam ser o invento redentivo de Deus? O Deus que criou a morte para livrar-nos da perpetuação do mal, também não teria garantido a repercussão da morte, gerando confusão e crise em nossas construções para livrar-nos da institucionalização da vida? Creio que sim.

É aqui que o capítulo 11 de Gênesis colabora com nossa reflexão. Acredito que a narrativa da Construção da Torre de Babel, em sua linguagem mítica, descreve a dinâmica da institucionalização e a reação divina a ela. A unidade fictícia descrita inicialmente é a ocasião para a orquestração de um plano: construir algo tão elevado que garantiria que seus nomes não seriam dispersos sobre a terra. Deus discerne o movimento maligno por trás da construção e promove confusão. Na confusão o projeto é esvaziado, a ficção é descoberta. No desencontro entre subjetividades, intensificado pela ampliação da liberdade e individualidade das pessoas, Deus livrou-os de perpetuarem o mal em sua instituição-construção. A pessoa humana instituiu, Deus babelizou. A pessoa humana organizou para perpetuar-se cruelmente, Deus confundiu para pulverizar graciosamente a perversidade.

Gianni Vattimo propõe a secularização como uma nova kenosis de Deus. A secularização que fez desmoronar a pretensão da religião de ser porta-voz da verdade última realizou no cristianismo o que Deus fez consigo mesmo. O cristianismo sem a secularização e sua marginalização da vida religiosa barbarizou em nome de Deus. A igreja secularizada precisou reaprender o caminho da humildade e da conversa. A igreja pós-secularização foi devolvida inadvertidamente ao caminho do amor.

Deus se esvaziou (kenosis) e se humanizou, serviu-nos como um de nós (Fl 2.5-8). E como um de nós, ensinou-nos também a morrer. Quem se esvaziou para se tornar gente e se humanizou ao limite da morte, concluiu sua trajetória gloriosamente, com um nome que é sobre todo nome: Jesus. A secularização, fenômeno social decorrente do iluminismo, racionalismo, industrialização e cientificismo, que destituiu a igreja-instituição do horizonte último de legitimidade da vida, tornou-se graciosamente a oportunidade de, esvaziada, a igreja reaprender o caminho do amor e da morte redentora.

Assistimos, hoje, a bagatelização de um movimento que já foi caro: o evangelicalismo. Ser evangélico, hoje, é ser confundido com o fundamentalismo religioso que legitimou a barbárie norte-americana no Iraque. Ser evangélico, hoje, é ser associado ao enriquecimento com o uso da religião. Ser evangélico, hoje, é participar do que há de mais sofisticado no mercadejamento da fé. O evangelicalismo brasileiro tem mais a marca de politiqueiros inescrupulosos que de santos e devotos. A cor e o som do movimento evangélico são tão artificiais quanto o que transmitem os comunicadores da televisão, cheios de cacoetes ensaiados e jargões vazios. No meio de tudo isso há um remanescente. Há “sete mil que não dobraram os joelhos”. Mas nem estes nem o passado heróico do evangelicalismo justificam qualquer insistência com um movimento que precisa morrer.

A pulverização dos ideais cristãos no movimento evangélico pode ser uma nova kenosis de Deus. Quem sabe Deus não está babelizando nossa construção evangélica para nos livrar da perpetuação do mal. Quem sabe esta confusão evangélica, em que não mais conseguimos nos identificar, não seja o esvaziamento que nos devolverá ao caminho do amor? Precisamos renovar nosso olhar para o Cristo de Deus, prestar atenção no despojamento divino em fazer-se gente e acolher a morte redentora. Se Deus se esvaziou sendo Deus, como recusar o esvaziamento de nossas instituições, pretensas divindades? Se quem era escolheu deixar de ser, nós que não somos que outra opção mais legítima podemos ter? Adélia Prado conclui com poesia o que eu não consegui com dissertação, “Fé”:


Uma vez, da janela,
vi um homem que estava prestes a morrer,
comendo banana amassada.
A linha do seu queixo era já de fronteiras,
mas ele não sabia, ou sabia?
Como posso saber?
Comia, achando gostoso,
me oferecendo corriqueiro, todavia
inopinado perguntou – ou perguntou comum como das outras vezes?
Como será a ressurreição da carne?
É como nós já sabemos, eu lhe disse,
tudo como é aqui, mas sem as ruindades.
Que mistério profundo!, ele falou
e falou mais, graças a Deus,
pousando o prato.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Arte traumática em Cildo Meireles

Por Leandro Lança




Há trabalhos em arte que transmitem mensagens herméticas, pouco claras, verdadeiros enigmas, e há outros que, propositalmente se revelam ao receptor de forma límpida, quase beirando ao óbvio. Paradoxalmente, escrever sobre os primeiros acaba tornando-se fácil pela abertura às abstrações e múltiplos paradigmas em que podem ser abordados, já os últimos, por serem claros demais, demandam maior esforço, pedem ao que escreve tarefa semelhante a “tirar leite de pedra”. Cildo Meireles tem esta opinião, e no filme Cildo (2009), dirigido por Gustavo Moura, confessa ter pena de quem escreve sobre os seus trabalhos, pelo fato de todos serem muito diretos e claros. A despeito desta dificuldade, resolvi escrever um pouco sobre três trabalhos do artista que estão interligados e talvez sejam os mais diretamente claros neste sentido. São eles: Sal sem Carne (1975), Olvido (1987-1989) e Missão-Missões: Como Construir Catedrais (1987).

Muitos trabalhos de Cildo nascem a partir de acontecimentos que marcaram a vida do artista e se negaram evadir-se de sua memória. Sal sem Carne é um bom exemplo. As questões indígenas no Brasil marcaram profundamente a infância de Cildo Meireles. Seu pai, funcionário da Fundação Nacional do Índio, acompanhou de perto a chacina que dizimou cerca de quatro mil índios Krahó, primeiro pela disseminação do vírus da gripe, e posteriormente na década de 40, por um massacre comandado por fazendeiros. Nesta ocasião o pai do artista abriu um processo judicial contra os mandantes do crime, que até hoje é tido como um dos primeiros processos judiciais no Brasil contra assassinato de uma comunidade indígena. O processo resultou em perseguição a sua pessoa, culminando em sua demissão, o que deixou a família em uma difícil situação financeira. As marcas que essa história deixou na infância de Cildo e que ele carrega consigo emergiram mais tarde em Sal sem Carne.

A obra se revela em um disco de vinil com gravações realizadas pelo artista em forma de registro em 1974 com alguns poucos remanescentes da aldeia e língua Krahó. Um dos sobreviventes narra o massacre no disco que, ainda contém sons de missas e procissões que são intercaladas a sons de musicas de festas rituais indígenas. O disco ainda acompanha mais de cem fotografias apresentadas em visores de slides. Para além desta relação pessoal do autor com a realidade retratada, este trabalho fala da relação histórica entre colonizador e colonizado, relação conflituosa com suas características habituais que envolvem massacres, pilhagem, roubo, e todo tipo de desrespeito e extermínio de alteridades. Como uma espécie de espectro não exorcizado, ou trauma não resolvido, este tema retornará na obra de Cildo doze anos depois com Missão-Missões: Como Construir Catedrais.

O trabalho que se assemelha a uma construção arquitetônica, possui um piso quadrado de 4m por 4m com 600 mil moedas que é ligado a um teto feito de 2 mil ossos, interligados por uma coluna central feita com 800 hóstias. Cildo geralmente utiliza materiais que tenham uma alta carga simbólica e em muitos trabalhos o artista se vale do excesso de acumulo destes materiais. Esta característica aparece, por exemplo, em: “Fontes”, com seus mil relógios eletrônicos, uma torre de rádios em “Babel”, uma coleção de objetos vermelhos em “Desvio para o Vermelho”, mais de duzentas bolas em “Glove Trotter”, entre outros. O próprio acúmulo de materiais simbólicos acaba se tornando outro elemento simbólico na obra. Assim como em Babel, cada rádio se torna metáfora de uma cultura e sua respectiva língua, em Missão-Missões, o grande número de ossos, hóstias e moedas, é significativo em relação aos massacres, catequizações e exploração econômica em larga escala.

Através de uma síntese clara entre três elementos simbólicos, o artista consegue nos mostrar as estruturas do empreendimento colonial realizado pelas Missões Jesuíticas no século XVII, no Brasil, Paraguai e Argentina. Cildo diz que o trabalho pode ser entendido pela seguinte fórmula: Poder econômico + Poder Religioso = Tragédia.

Ainda em 1987, Cildo dá inicio a Olvido, outro trabalho ligado à questão indígena, mais especificamente sobre o encontro entre estas civilizações e a civilização européia e a assimetria de poder envolvido neste encontro. Cildo constrói uma tenda indígena recoberta com cédulas de diversos países da América Latina em que populações nativas foram dizimadas. Ao redor desta tenda foram espalhadas cerca de três toneladas de ossos, dispostos num círculo, que, por sua vez, é cercado por um muro feito de setenta mil velas. Análogo a Missão-Missões, temos o acumulo de materiais carregados de simbolismo, mas aqui, dispostos de maneira diferente. Se a estrutura quadrada de um nos remete à fundação de catedrais, o circulo formado em Ouvido parece nos remeter a uma espécie de ritual fúnebre ou sacrificial. Ossos e dinheiro estão cercados por velas que, se por um lado podem representar uma fogueira, de outro podem fazer alusão ao hábito cristão de acender velas para santos e mortos. O trabalho ainda contém um elemento sonoro bem sugestivo. Meio que emergindo do centro da tenda, pode-se ouvir o som de motosserras em ação constante, que segundo Paulo Herkenhoff: “

(...) indica o incansável, terrível labor da destruição que, sem interrupção, vem do passado colonial ao presente capitalista”. (HERKENHOFF, 1999)

Creio que estes trabalhos citados se encaixam na categoria de arte traumática formulada por Hal Foster, em “O Retorno do Real”. Ao analisar o traumático em Andy Warhol, o autor avalia o método de repetição do artista sobre vários aspectos. A repetição de um evento traumático como forma de incorporá-lo à economia psíquica, tal como formulado por Freud; a repetição não como controle do trauma, mas como fixação obsessiva no objeto de melancolia; a repetição como proteção do real, como drenagem do significado, ou como estratégia de revelação das estruturas que compõem o trauma via o exagero. A partir do trauma coletivo da colonização e do trauma individual vivenciado por Cildo em seu contato com a realidade indígena muito cedo, vejo a metodologia do acúmulo nesta série de trabalhos, com efeitos parecidos ao da repetição analisados por Hal Foster. Ao mesmo tempo em que o acúmulo de elementos simbólicos do trauma pode funcionar como reprodução de uma realidade espectral, pode esvaziar estes elementos de seu real significado, pois como revela Andy Warhol: “quanto mais se olha para exatamente a mesma coisa, tanto mais ela perde seu significado, e nos sentimos cada vez melhor e mais vazios”.


Segundo o crítico e curador Agnaldo Farias:

“A carreira de Cildo Meireles é pontuada por uma dupla denúncia: dos limites do circuito artístico, enredado nas malhas da sociedade, como instância de neutralização do efeito liberador da arte; e de aspectos diversos do capitalismo”. (FARIAS, 2002)

Se nestes trabalhos apresentados não temos uma crítica direta ao sistema da arte, temos bons exemplos da capacidade que Cildo Meireles tem de expor as estruturas, contradições e rachaduras no sistema capitalista (neste caso de exploração econômica colonial) de forma simples, direta, e não menos impactante ou instigante.



Bibliografia:

HERKENHOFF, Paulo. In Cildo Meireles. São Paulo.Ed, Cosac & Naify.1999.

FOSTER, Hal, O Retorno do Real. Londres: MIT Press, 1996.

FARIAS, Agnaldo. Arte Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2002.

FILME: CILDO, Direção: Gustavo Rosa de Moura. Prod. MATIZAR, 2009

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Resista à tentação de pertencer a um grupo

Por Augusto de Franco

Em geral as pessoas estão acostumadas a interagir em espaços proprietários (fechados), não em redes (abertas). Não estão abertas à interação com o que chamei de outro-imprevisível. Por isso fazem escolas, erigem igrejas, urdem corporações e partidos e servem à instituições hierárquicas (sejam sociais, estatais ou empresariais). E, às vezes, seu quadradinho é um espaço proprietário virtual, um blog ou uma página no Facebook.

Mesmo quando se aventuram a fazer redes, as pessoas, em geral, organizam grupos proprietários, estabelecem contextos que separam quem está dentro de quem está fora, criam sulcos que acabam disciplinando a interação por meio de regras (muitas vezes tácitas, mas não por isso menos efetivas), de um glossário próprio (pelo qual ressignificam os termos que usam recorrentemente gerando algum tipo de jargão) não importando para nada se esta “wikipédia” (ou “contextopedia”) privada está ou não publicada em um site aberto ou fechado; enfim, fazem tudo para promover o seu grupo – às vezes chamado de comunidade – à condição de instância mais estratégica do que as demais (os outros ambientes em que interagem, inclusive as mídias sociais onde se registram). Este é um dos motivos pelos quais sua interação nesses outros ambientes é, em geral, tão pouco intensa ou tão pouco frequente. Pudera! Seu tempo está tomado pelo seu próprio grupo (seja uma organização da sociedade formal ou informal, seja um órgão estatal, seja uma empresa).

E o mais interessante é que, muitas vezes, essas pessoas estão convencidas intelectualmente de que devem se organizar em rede. Não raro denominam de redes suas organizações hierárquicas ou seus grupos proprietários. Não estão – em sua maioria – mentindo ou fazendo propaganda enganosa. Elas acreditam mesmo que suas organizações sejam redes, desde que seus membros estejam convencidos (ou “tenham consciência”) de que agora entramos na era das redes (por algum motivo elas acham que consciência é algo capaz de determinar comportamentos coletivos).

Chega a ser fascinante observar como essas pessoas não conseguem viver fora do seu quadrado. E como racionalizam tal aprisionamento lançando mão das mais variadas teorias sociológicas sobre grupos (a sociologia vem aqui, não raro, como um socorro contra a política, como uma proteção contra a experiência direta de uma política não-autocrática). Ah! é difícil, como é difícil se atirar na correnteza quando é tão mais fácil construir diques e ficar boiando na tranquilidade da represa!

Pois bem. Tudo isso – que já foi dito e repisado, por mim e por outros, nos últimos dois anos – me leva agora a refletir sobre o seguinte: se quiserem realmente tecer redes as pessoas não devem se agregar a outras pessoas em grupos proprietários, comunidades exclusivas, inner circles, bunkers para se proteger do mundo exterior ou outras formas de organização constituídas na base do “cada um no seu quadrado”. Sim, pode parecer surpreendentemente contraditório, à primeira vista, dizer o que vou dizer agora:

Se você quer fazer redes, resista a tentação de pertencer a um grupo.

Se você se deixa capturar por um grupo ou se põe a capturar outras pessoas para um grupo (que seja considerado – ou funcione como, dá no mesmo – o seu grupo), então você terá imensas dificuldades de interagir em rede de modo mais distribuído do que centralizado. Se você quer, porque acha que precisa, porque sente, às vezes desesperadamente, a vontade de se juntar a outras pessoas para executar algum projeto coletivo, compartilhar com elas suas ideias, seus sonhos (e também suas ansiedades), somar esforços, apoiar e receber apoio praticando a ajuda-mútua dentro de um campo de cumplicidade, enfim, constituir um grupo e coesioná-lo a partir de uma visão comum, de um “falar a mesma língua”, de uma sintonia fina de sentimentos e emoções, então se prepare para fazer o mais difícil: matar essa vontade!

Simplesmente mate essa vontade. Se preciso, vá para o deserto e passe um tempo lá. Se você já está conectado a outras pessoas, por que diabos quer também forçar uma clusterização que selecionará a priori algumas conexões como mais fortes do que outras, alguns caminhos como mais válidos do que outros, alguns planos feitos intra muros (quer dizer, dentro daquele clusterzinho que foi urdido antes da interação) como mais estratégicos do que outros?

Não há qualquer problema em se reunir com muitos grupos para propósitos diversos, públicos ou privados, interagir em vários aglomerados, atuar coletivamente em várias instâncias. O problema só surge quando você faz tudo isso não a partir de você mesmo, mas sempre a partir de um grupo que encara os demais ambientes coletivos como campo de atuação (e uma atuação inevitavelmente tática, mesmo quando você proteste o contrário) desse grupo.

Trabalhar em rede distribuída é diferente de trabalhar num grupo proprietário, numa organização nuclear que compartilha uma visão comum e exige essa visão comum para continuar interagindo. Na verdade, o problema está na construção de mundos baseados na participação.

Portanto, se você quer experimentar redes (mais distribuídas do que centralizadas), nada de grupo participativo, nada de chegar a algum formato com base em participação. Redes não são ambientes de participação e sim de interação. Não temos que decidir o que todos farão em bloco. Vamos interagir e ver o que acontece. O formato final de qualquer ação coletiva será sempre uma combinação fractal, emergente, de certo modo inédita e imprevisível, das contribuições de cada um.

Em outras palavras, se você quer fazer redes não pode esquecer jamais uma coisa: você é uma pessoa. Paulo Brabo (2007), em um texto que não me canso de citar, escreveu assim:

A primeira coisa a fazer, se você ainda não fez, é desiludir-se por completo de todas as iniciativas comunitárias ou governamentais, por mais bem intencionadas que sejam, e raramente são. Esqueça, meu caro discípulo, o coletivo. A salvação não virá de ongs ou ogs, Gogues ou Magogues, poderes ou potestades. A salvação não virá de igrejas, assembleias, organizações de bairro, sindicatos, asilos, orfanatos ou campanhas de assistência. As ongs têm a tremenda virtude de não serem governamentais, mas contam com a imperdoável falha de serem organizações. Repita comigo: as instituições não existem. Só existem pessoas.

É claro que é necessário entender o contexto confessional (ou teologal) em que Brabo escreveu sua bela homilia herética e fixar-se nas suas mensagens centrais: desiluda-se por completo das iniciativas comunitárias, esqueça o coletivo, reconheça a imperdoável falha das organizações (aquela que deriva do fato de serem organizações) e convença-se de que as instituições não existem: só existem pessoas.

Fale como uma pessoa. Seja uma pessoa. Não aja como se fosse um grupo, um projeto, uma organização (nem mesmo tuite como se fosse uma coletividade abstrata). Uma pessoa jurídica é uma pessoa imaginária (ou seja, uma não-pessoa). A vida gastou 3,9 bilhões de anos e as coletividades humanas formadas pela convivência gastaram uns 300 mil anos para constituírem essa tão surpreendente quanto improvável realidade que somos (o humano, a pessoa: o encontro fortuito do simbionte natural em evolução com o simbionte social em prefiguração) e na hora em que vamos nos apresentar a alguém, sobretudo a alguma coletividade, temos vergonha de dizer que somos “apenas” uma pessoa e preferimos declarar que estamos representando alguma dessas organizações vagabundas que, em média, não conseguem sobreviver mais do que poucos anos e que, além de tudo, são não-humanas, quando não desumanas.

Mas… atenção! Pessoa não é o mesmo que a abstração chamada indivíduo. Redes sociais não são redes de indivíduos e sim de pessoas. O conjunto dos pensionistas do previdência social não constitui uma rede social, assim como não constitui uma rede social a população de um país. O social, como sempre dizemos, não é a coleção dos indivíduos e sim as configurações móveis geradas a partir do que ocorre entre eles (que, então, deixam de ser indivíduos para passar a ser pessoas). Quando interagimos, tornamos-nos pessoas. Assim, pessoa já é rede.

Se você não tem liberdade para interagir nos seus próprios termos, como uma pessoa, se você diz: “vou consultar primeiro meu chefe ou meus companheiros” antes de decidir sobre isso ou aquilo, então sua porção-borg cresce e sua porção-social diminui. Em outras palavras, sua porção-rebanho cresce e sua porção-pessoa diminui. Em outras palavras, ainda: você perde um pouco daquela qualidade da alma que chamamos de humanidade.

Se você se define como participante de qualquer grupo, quer dizer, restringe suas possibilidades de interagir para se enquadrar nos termos já estabelecidos por outrem (ou, até, por você mesmo, porém antes da interação), então você terá muitas dificuldades de entender, experimentar e atuar em rede (distribuída).

Toda realização em rede distribuída é um projeto que vai se construindo à medida que avança, que vai se formando ao sabor de fluzz, que vai gerando ordem a partir – e no ritmo – da interação. Em tal contexto é desnecessário, a rigor, combinar antes o script. É inútil – e frequentemente contraproducente – mobilizar energia para direcionar um grupo.

Se você quer fazer redes, nada de formar uma comunidade que vá além do seu propósito específico e declarado (como se fosse um comunidade de destino). Não existe ‘a’ comunidade: existem múltiplas, diversas, comunidades. Se você acha que existe aquela comunidade que é ‘a’ comunidade (porque é “a sua”, a escolhida, a predestinável), é sinal de que você se deixou aprisionar por um grupo (às vezes uma prisão que você mesmo engendrou). E aí não vão tardar a surgir aquelas manifestações horríveis de pertencimento exclusivo, de fidelidade… Mesmo que você aceite o direto de uma pessoa de abandonar uma comunidade, isso não basta. É necessário aceitar o direito de uma pessoa de pertencer a várias comunidades ao mesmo tempo! Ou seja, é necessário desconstituir a cultura (ou quebrar a linha de transmissão de comportamento) do “cada um no seu quadrado”.

Você já notou que este direito não é reconhecido nas organizações hierárquicas, mesmo nas privadas, como os partidos e as empresas? Nas empresas esse direito só existe para os donos ou acionistas. Quando lhe pagam um salário, é como se dissessem: “comprei você e agora você é meu; nada de transar fora do meu quadrado”.

Se você quer fazer redes, nada de alinhar visões. Na maioria das organizações burocráticas, sejam sociais, empresariais ou governamentais, o tempo das pessoas é gasto em reuniões para alinhamento (ou seja, agrupamentos forçados para discutir como realizar melhor as diretivas estabelecidas por cima ou por fora da sua interação). Mal saem de uma reunião os “colaboradores” (um eufemismo empresarial para empregados, quer dizer, subordinados) já entram em outra reunião. E assim passam o dia: entre o computador, o banheiro, o café e as indefectíveis reuniões. Revela-se óbvio o motivo de tais reuniões: são ambientes de direcionamento voltados à reprodução de comportamentos, são campos de adestramento, são artifícios para proteger as pessoas da experiência de empreender, de criar, de inovar.

Se você quer fazer redes, nada de virar escola, nem mesmo escola de pensamento. As comunidades ditas de livre adesão, em sua maioria, são algum tipo de escola de pensamento, ou de igreja, ou de corporação, ou de partido, ou de alguma coisa que exija que você adote e professe uma visão coletivamente construída para pertencer ao grupo e poder falar em seu nome. Mas se você quer fazer redes, nada de criar coesões que separem os de dentro dos de fora.

Estar em rede é sempre uma aposta: a aposta de que da nossa interação desorganizada vai surgir algo interessante, não antes, no ensaio (“a vida é beta”, como diz o Silvio Meira), mas sobretudo ali, na hora exata em que ocorre, bottom up.


Augusto de Franco é o criador e um dos netweavers da Escola-de-Redes - uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias de netweaving (com 5.959 conectados em 27/02/11) e da empresa-em-rede chamada Netweaving HCW. É autor de mais de duas dezenas de livros sobre desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais, como Alfabetização Democrática (2007), Novas Visões sobre a Sociedade, o Desenvolvimento, a Internet, a Política e o Mundo Glocalizado (2008), Tudo que é sustentável tem o padrão de rede (2008), Dez escritos sobre redes sociais (2010). Trabalha atualmente no seu novo livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio.)