quarta-feira, 20 de abril de 2011

Arte traumática em Cildo Meireles

Por Leandro Lança




Há trabalhos em arte que transmitem mensagens herméticas, pouco claras, verdadeiros enigmas, e há outros que, propositalmente se revelam ao receptor de forma límpida, quase beirando ao óbvio. Paradoxalmente, escrever sobre os primeiros acaba tornando-se fácil pela abertura às abstrações e múltiplos paradigmas em que podem ser abordados, já os últimos, por serem claros demais, demandam maior esforço, pedem ao que escreve tarefa semelhante a “tirar leite de pedra”. Cildo Meireles tem esta opinião, e no filme Cildo (2009), dirigido por Gustavo Moura, confessa ter pena de quem escreve sobre os seus trabalhos, pelo fato de todos serem muito diretos e claros. A despeito desta dificuldade, resolvi escrever um pouco sobre três trabalhos do artista que estão interligados e talvez sejam os mais diretamente claros neste sentido. São eles: Sal sem Carne (1975), Olvido (1987-1989) e Missão-Missões: Como Construir Catedrais (1987).

Muitos trabalhos de Cildo nascem a partir de acontecimentos que marcaram a vida do artista e se negaram evadir-se de sua memória. Sal sem Carne é um bom exemplo. As questões indígenas no Brasil marcaram profundamente a infância de Cildo Meireles. Seu pai, funcionário da Fundação Nacional do Índio, acompanhou de perto a chacina que dizimou cerca de quatro mil índios Krahó, primeiro pela disseminação do vírus da gripe, e posteriormente na década de 40, por um massacre comandado por fazendeiros. Nesta ocasião o pai do artista abriu um processo judicial contra os mandantes do crime, que até hoje é tido como um dos primeiros processos judiciais no Brasil contra assassinato de uma comunidade indígena. O processo resultou em perseguição a sua pessoa, culminando em sua demissão, o que deixou a família em uma difícil situação financeira. As marcas que essa história deixou na infância de Cildo e que ele carrega consigo emergiram mais tarde em Sal sem Carne.

A obra se revela em um disco de vinil com gravações realizadas pelo artista em forma de registro em 1974 com alguns poucos remanescentes da aldeia e língua Krahó. Um dos sobreviventes narra o massacre no disco que, ainda contém sons de missas e procissões que são intercaladas a sons de musicas de festas rituais indígenas. O disco ainda acompanha mais de cem fotografias apresentadas em visores de slides. Para além desta relação pessoal do autor com a realidade retratada, este trabalho fala da relação histórica entre colonizador e colonizado, relação conflituosa com suas características habituais que envolvem massacres, pilhagem, roubo, e todo tipo de desrespeito e extermínio de alteridades. Como uma espécie de espectro não exorcizado, ou trauma não resolvido, este tema retornará na obra de Cildo doze anos depois com Missão-Missões: Como Construir Catedrais.

O trabalho que se assemelha a uma construção arquitetônica, possui um piso quadrado de 4m por 4m com 600 mil moedas que é ligado a um teto feito de 2 mil ossos, interligados por uma coluna central feita com 800 hóstias. Cildo geralmente utiliza materiais que tenham uma alta carga simbólica e em muitos trabalhos o artista se vale do excesso de acumulo destes materiais. Esta característica aparece, por exemplo, em: “Fontes”, com seus mil relógios eletrônicos, uma torre de rádios em “Babel”, uma coleção de objetos vermelhos em “Desvio para o Vermelho”, mais de duzentas bolas em “Glove Trotter”, entre outros. O próprio acúmulo de materiais simbólicos acaba se tornando outro elemento simbólico na obra. Assim como em Babel, cada rádio se torna metáfora de uma cultura e sua respectiva língua, em Missão-Missões, o grande número de ossos, hóstias e moedas, é significativo em relação aos massacres, catequizações e exploração econômica em larga escala.

Através de uma síntese clara entre três elementos simbólicos, o artista consegue nos mostrar as estruturas do empreendimento colonial realizado pelas Missões Jesuíticas no século XVII, no Brasil, Paraguai e Argentina. Cildo diz que o trabalho pode ser entendido pela seguinte fórmula: Poder econômico + Poder Religioso = Tragédia.

Ainda em 1987, Cildo dá inicio a Olvido, outro trabalho ligado à questão indígena, mais especificamente sobre o encontro entre estas civilizações e a civilização européia e a assimetria de poder envolvido neste encontro. Cildo constrói uma tenda indígena recoberta com cédulas de diversos países da América Latina em que populações nativas foram dizimadas. Ao redor desta tenda foram espalhadas cerca de três toneladas de ossos, dispostos num círculo, que, por sua vez, é cercado por um muro feito de setenta mil velas. Análogo a Missão-Missões, temos o acumulo de materiais carregados de simbolismo, mas aqui, dispostos de maneira diferente. Se a estrutura quadrada de um nos remete à fundação de catedrais, o circulo formado em Ouvido parece nos remeter a uma espécie de ritual fúnebre ou sacrificial. Ossos e dinheiro estão cercados por velas que, se por um lado podem representar uma fogueira, de outro podem fazer alusão ao hábito cristão de acender velas para santos e mortos. O trabalho ainda contém um elemento sonoro bem sugestivo. Meio que emergindo do centro da tenda, pode-se ouvir o som de motosserras em ação constante, que segundo Paulo Herkenhoff: “

(...) indica o incansável, terrível labor da destruição que, sem interrupção, vem do passado colonial ao presente capitalista”. (HERKENHOFF, 1999)

Creio que estes trabalhos citados se encaixam na categoria de arte traumática formulada por Hal Foster, em “O Retorno do Real”. Ao analisar o traumático em Andy Warhol, o autor avalia o método de repetição do artista sobre vários aspectos. A repetição de um evento traumático como forma de incorporá-lo à economia psíquica, tal como formulado por Freud; a repetição não como controle do trauma, mas como fixação obsessiva no objeto de melancolia; a repetição como proteção do real, como drenagem do significado, ou como estratégia de revelação das estruturas que compõem o trauma via o exagero. A partir do trauma coletivo da colonização e do trauma individual vivenciado por Cildo em seu contato com a realidade indígena muito cedo, vejo a metodologia do acúmulo nesta série de trabalhos, com efeitos parecidos ao da repetição analisados por Hal Foster. Ao mesmo tempo em que o acúmulo de elementos simbólicos do trauma pode funcionar como reprodução de uma realidade espectral, pode esvaziar estes elementos de seu real significado, pois como revela Andy Warhol: “quanto mais se olha para exatamente a mesma coisa, tanto mais ela perde seu significado, e nos sentimos cada vez melhor e mais vazios”.


Segundo o crítico e curador Agnaldo Farias:

“A carreira de Cildo Meireles é pontuada por uma dupla denúncia: dos limites do circuito artístico, enredado nas malhas da sociedade, como instância de neutralização do efeito liberador da arte; e de aspectos diversos do capitalismo”. (FARIAS, 2002)

Se nestes trabalhos apresentados não temos uma crítica direta ao sistema da arte, temos bons exemplos da capacidade que Cildo Meireles tem de expor as estruturas, contradições e rachaduras no sistema capitalista (neste caso de exploração econômica colonial) de forma simples, direta, e não menos impactante ou instigante.



Bibliografia:

HERKENHOFF, Paulo. In Cildo Meireles. São Paulo.Ed, Cosac & Naify.1999.

FOSTER, Hal, O Retorno do Real. Londres: MIT Press, 1996.

FARIAS, Agnaldo. Arte Brasileira Hoje. São Paulo: Publifolha, 2002.

FILME: CILDO, Direção: Gustavo Rosa de Moura. Prod. MATIZAR, 2009

Nenhum comentário: