sexta-feira, 20 de maio de 2011

Tot e Tamus, entre a escrita e a oralidade

por Leandro Lança

Recentemente a Bráulia Ribeiro, escritora e missionária que adimiro muito escreveu um texto para a revista Ultimato sobre os povos ágrafos (sem escrita) e a missão cristã. Segundo Bráulia, a maior contribuição das missões para a história é a escrita. Ao longo do texto defende que apesar da tradição oral não deixar ninguém mais “burro” a ausência da escrita impede estes povos de fazerem contribuições eficazes para o resto da humanidade, além de ser um impedimento para a constituição e perpetuação de sua própria história. Bráulia vai um pouco além e deixa claro que a oralidade traz uma impossibilidade de se produzir ciência.

Bom, o texto na íntegra pode ser lido neste endereço:

http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/329/escrever-ou-nao-eis-a-questao

Deixo aqui a minha sensível discordância destas idéias da Bráulia. E para isto conto com a contribuição de uma belíssima e esclarecedora história que Sócrates conta no Fedro:


“Na cidade egípcia de Naucratis havia um famoso deus antigo cujo nome era Tot. Naqueles dias o deus Tamus era rei de todo o Egito. A ele veio Tot e mostrou-lhe suas invenções, desejando que os demais egípcios pudessem beneficiar-se delas. Ele enumerou-as todas e Tamus inquiriu a respeito de seus diversos usos, louvando-as e censurando-as à medida em que aprovava ou desaprovava.

Quando chegaram à escrita, Tot disse:

– Isto tornará os egípcios mais sábios e dará a eles memória mais aprimorada; é elixir tanto para a memória quanto para o intelecto.

– Ah, engenhoso Tot – respondeu Tamus, – o pai ou inventor de uma arte não é sempre o melhor juiz da utilidade ou da inutilidade de suas próprias invenções. E neste caso, sendo pai da escrita, por amor paternal você atribuiu a sua filha uma qualidade que ela não possui. Essa sua descoberta fomentará o esquecimento na alma dos aprendizes, porque deixarão de usar suas memórias. A confiança deles na escrita, produzida por caracteres externos que não são parte deles mesmos, irá desencorajá-los a usar a memória que está neles. O elixir que você descobriu promove não a memória, mas a reminiscência. A escrita dará aos seus discípulos não a verdade, mas a aparência da verdade; serão ouvintes de muitas coisas, e terão aprendido coisa alguma; parecerão ser oniscientes, mas se manterão na maior parte ignorantes; serão companhia enfadonha, tendo a aparência de sabedoria sem a realidade.”

Ao ler o texto da Bráulia, acho importante em primeiro lugar desconfiar que a escrita seja mesmo uma grande contribuição, ainda mais, a maior de todas realizadas pelas missões.

A partir desta desconfiança, faz-se necessário desconfiar e problematizar o resto. Será que o domínio do conhecimento oral, e tudo o que isto implica, não foi uma grande pérola desprezada pelos colonizadores em seu ímpeto de levar a escrita aos povos ágrafos como a grande salvação? Será que a oralidade impede contribuições válidas para a humanidade, ou é a humanidade (e seus centros de poder) que nunca quiseram valorizar a oralidade e o conhecimento relativo à ela?
Será que a oralidade não pode ser um baú mais eficaz para a memória? Como jovem ocidental vivenciando o ápice da escritura em tempos de virtualidade, como acreditar nas promessas de Tot, quando tudo e todos ao redor só comprovam a tese de Tamus?

O que salta do texto de Bráulia são utopias modernas, que, sintomáticamente esquecendo-se dos acontecimentos do século passado, permanecem crentes na ciência, na História, no progresso e desenvolvimento tecnológico e econômico, e que, não poderia de ser, ancora-se inalienavelmente em uma sociedade da escritura.

Digo isto, sem deixar de entender o medo que Bráulia transparece no texto de que povos ágrafos fiquem isolados em uma situação de invisibilidade cívil que pode levar à todo tipo de abuso contra estes povos. Porém, entendo que a saída esteja no rebaixamento de nossa arrogância e crença na escrita e não na desvalorização da oralidade que perde seu potencial com a introdução da escrita. Faça a proposta ao “homem civilizado” de abandonar a escrita, será que sua resposta não será idêntica ao do povo da amazônia que vê no abandono da oralidade o deixar de ser quem são?

Como o assunto toca na questão da missão cristã, não poderia terminar sem dúvidar da última senteça da autora. Em sua conclusão, Bráulia dá a entender que a missão da igreja é levar a escrita e a Palavra (Evangelho) aos povos do mundo. O que aprendi na Palavra é que devemos levar sim, o verbo encarnado, quanto à escrita, tenho sérias resalvas.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá Leo, ótima a sua crítica, e me surpreende a imbecilidade da afirmação da Braulia. Isto só mostra o quanto desconhece o assunto. Eu trabalho com pesquisa histórica, hoje mais especificamente com registro de história oral. Acredito que deveriam ser enviados para esta senhora algumas bibliografias, sobre oralidade, afim de que ela faça a leitura, para não dar gafes como estes falando imbecilidades. Destas posso citar:

THOMPSON, Paul. A voz do passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

NEVES, Lucília de Almeida. História Oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2006.

E também se me lembro outro pequeno, mas não menos importante é o livro história oral: procedimentos e possibilidades de Sônia Maria de Freitas

Por coisas assim os ditos “cristãos” são zoados diante de pessoas do meio acadêmico.

Pirro disse...

Essa escritora precisa saber que a memória era o sustentáculo da cultura oral bastante eficaz na transmissão dos valores de um determinado povo...
Creio que as missões cristãs acelerou a destruição da cultura oral.

Leo disse...

Obrigado pelos comentários e referências, Lixeira teológica e Pirro.