terça-feira, 28 de junho de 2011

Carta a Michel Leiris

Carta motivada pela leitura de "O Espelho de Tauromaquia" escrito por Michel Leiris(1901-1990). Leiris foi escritor, etnólogo e crítico de arte francês.


Belo Horizonte, oito de junho de 2011

Caro Leiris,


Dentre as várias revelações que me foram apresentadas por você através da tauromaquia, duas analogias me atravessaram. A primeira diz respeito ao amor e a segunda ao sacrificio.

As características do matador (personagem em geral Don-juanesco), tais como seus trajes brilhantes, a coreografia de seu trabalho, o modo como estira ou encurva seu corpo, junto à característica fálica do touro (cujos genitais são comidos por alguns aficionados após a corrida) são bem sugestivas. Unem-se a isso as características da dança que envolve vítima e algoz em ritmo de vai-vem em seqüência de aproximação e distanciamento. Em suas palavras, a conclusão deste “coito” termina com “uma espécie de penetração, a estocada final, na qual é desejável que a espada seja enterrada na ferida até que se molhem os dedos”. Ao ler isto, lembrei-me de um texto sobre o trabalho do artista Miguel Rio Branco, onde um crítico de arte fazendo associações com touradas, relacionava o matador ao feminino e o touro ao masculino.Para este autor, no jogo amoroso, cabe geralmente a mulher a arte da sedução. Fazendo uso de trajes especiais, acessórios e gestos, aos poucos a mulher coloca para dançar o homem, com toda sua virilidade irracional e intempestiva. Com leveza, a mulher dribla a força bruta do homem conseguindo o que quer, e, no momento em que ele se sente mais ativo e dominador, é dominado e dilacerado por um golpe certeiro.

Em relação ao sacrfício sagrado não poderia deixar de associar à performance antropofágica proposta por Cristo na última ceia. Ato que permanece como rito e festa na eucaristia. De alguma maneira este judeu do primeiro século teve a sacada contracultural (tendo em vista as severas interdições judaicas no campo da alimentação) de que só comendo o corpo do outro se opera a fusão completa. Isto ele o faz pouco antes de ser sacrificado.

A lógica do sacrifício visa aplacar a ira de um deus através da morte que restabelece uma condição de normalidade. Na tauromaquia assistimos ao sacrifício do touro, que, morto, não corresponde nenhum perigo a ordem, cuja representação do mal é punida pelo bem. A corrida se desenvolve num ritmo típico que vai da extrema violência em direção a um ambiente mais purificado. A violência bruta do inicio, com o touro estripando os cavalos e recebendo lanças, é seguido pelo segundo estágio, das banderillas que castigam o touro mas agora em tom de ornamento, e finalmente, no último estágio o touro é seduzido e sacrificado dando fim ao elemento torto e consagrando o reto.

Vejo na eucaristia, sobretudo no rito protestante (que acompanhei diversas vezes), esta consagração do reto, esta ação purificadora. Gosto muito da idéia de que no sacrificio do touro, o sacrificador corre risco de morte. Isso me fez entender as ressalvas que são feitas pelo ministrante da eucaristia àqueles que pretendem participar do ato. É uma operação de risco, e risco de morte. Aquele que pretende comer o corpo e beber o sangue do Cristo sacrificado, tem de estar disposto a morrer. Só quem dança com a morte, faz juz à imortalidade.



Ass: Leandro Lança

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