terça-feira, 29 de maio de 2012

Notas sobre Ciência e Arte Moderna



Tradução: Raquel.S. Vianna


Todas as descobertas científicas prévias tinham sido, de modo geral, apreendidas, apreciadas e aplaudidas pelo público sofisticado – até que a teoria de Einstein sobre a inter-relação entre espaço, tempo e luz desconcertou uma audiência educada. Por volta da mesma época, leitores inteligentes sentiram-se repelidos por outras teorias, igualmente obscuras no campo da mecânica quântica. As pessoas sabiam que alguma coisa significativa tinha acontecido em relação à natureza da realidade; mas pela primeira vez na história, ninguém, exceto o descobridor e um seleto número de conhecedores eram capazes de entender as novas teorias.

Nos primeiros anos do século XX, movimentos sucessivos na arte, como as descobertas correspondentes na física, também apresentaram ao público confuso arranjos de formas cada vez mais difíceis de reconhecer. Começando com o Fauvismo, Cubismo e Futurismo, e continuando com Expressionismo, Suprematismo, Dadaísmo e Surrealismo, novos estilos de arte assaltaram a sensibilidade estética coletiva ocidental até que o público em geral recuou em confusão e gradualmente se afastou do desafio de tentar entender algum significado que pudesse existir por trás dessas mostras tumultuadas de aparente caos gráfico. A arte tinha existido por pelo menos trinta e cinco mil anos. Durante esse longo período de tempo, nenhum dos vários estilos que se sucederam foi totalmente incompreensível para suas audiências. As pessoas se sentiram repelidas por alguns, indiferentes por outros e mesmo ultrajadas por alguns poucos; mas nunca antes o público em geral tinha visto a arte de sua própria civilização como incompreensível. (...) Nunca na história da arte que cobriu milhares de anos e várias culturas um grupo de artistas tinha deliberadamente e sistematicamente desenvolvido uma arte que não podia ser entendida. Em uma fantástica coincidência, o ramo da ciência primariamente responsável por explicar a natureza da realidade física tornou-se inimaginável no exato momento em que a arte tornou-se ininteligível.

A questão inescapável precisa ser perguntada: a aparição abrupta de uma arte impenetrável tem alguma conexão com o público em geral ter se afastado da ciência? No mesmo momento em que a arte se retirou atrás de uma máscara enigmática e inescrutável, repelindo os esforços daqueles que tentaram reconhecê-la, a ciência tornou-se não amigável e desconhecida. A resposta para esta questão precisa ser um sonoro sim!

De algum modo, os artistas, inspecionando os aposentos bolorentos da imaginação coletiva, tinham conseguido fazer surgir modos radicalmente novos de representar os igualmente radicalmente novos conceitos físicos que mal tinham sido anunciados. Sem estar verdadeiramente conscientes disso, eles desenvolveram uma linguagem totalmente nova para descrever as idéias impenetráveis e intraduzíveis concebidas pelos físicos. Os ícones silenciosos contidos na arte desse século são a resposta inconsciente dos artistas ao mutismo dos cientistas no exato momento em que eles se tornaram atrapalhados e gaguejantes nas suas tentativas de explicar os novos conceitos para o público.

Várias gerações tornaram-se adultas nesse século, imersas em uma cultura que testemunhou a difusão de conceitos por trás da relatividade e da mecânica quântica, idéias que originalmente não poderiam nem mesmo ser verbalizadas. Talvez agora, próximo ao final do século, nós podemos olhar para trás e reconhecer que esses artistas, considerados inacessíveis, estavam encontrando modos de expressar o incomunicável. Nós não podemos saber quão influentes foram as mensagem subliminares dessa arte nos nossos padrões de pensamento: a mudança de um sistema de ver e pensar para outro é inevitavelmente um evento complexo.

Na virada do século, outro conceito revolucionário borbulhou do caldeirão de idéias em ebulição no zeitgeist daquele tempo. Sigmund Freud propôs a existência de um monstro inapreensível que controlava subversivamente as ações por trás dos trabalhos civilizados da comunicação cotidiana, assim como o charlatão operava as alavancas atrás da fachada de o Mágico de Oz. Freud desmantelou a camuflagem cuidadosamente preparada e revelou a identidade do fantasma. Ele o chamou de inconsciente. (...) À primeira vista, o desmascaramento realizado por Freud não parecia relacionado com as revisões de Einstein de nossas noções de espaço e tempo. A teoria científica de Einstein sobre o mundo “real” e as conjecturas de Freud sobre o vórtice negro no centro da mente pareceram entidades desvinculadas. Entretanto, de acordo com Freud, os sonhos eram o caminho para o inconsciente. As mesmas pessoas que desistiram de entender a teoria da relatividade de Einstein por causa de sua complexidade, ou de decifrar as desconcertantes composições cubistas de Picasso reconheciam prontamente as aberrações de tempo e espaço que eles experimentavam nos seus sonhos. O tempo do sonho não obedece os comandos do tempo, nem o espaço do sonho se conforma aos axiomas de Euclides. Sonhos também destroçam as leis usuais de causa e efeito. Relatividade, Cubismo e Psicanálise compartilham esse aspecto: distorções profundas do tempo e espaço cotidiano ocorrem regularmente nas três teorias. Depois de poucos anos em que o físico Einstein e o artista Picasso começaram a explorar as possibilidades de um novo tipo de espaço e tempo, Freud, em seu livro notável A interpretação dos sonhos (1900) iluminou o espaço-tempo peculiar do inconsciente estabelecendo a validade dos sonhos.O sonho tornou-se rapidamente o meio para certos artistas sondar as profundezas do seu próprio inconsciente, buscando por símbolos e justaposições que violavam todo o senso racional. Em 1917, Apollinaire chamou esse novo movimento Surrealismo, o que significa sobre realidade. (...) Apesar de sua aparente ausência de conexão com o quadro negro nítido da ciência, as pinturas oníricas dos artistas surrealistas revelam imagens cruciais que podem ajudar as pessoas a entender a visão de realidade lavrada pela física moderna.

A investigação de Freud deu significado e valor para as perambulações noturnas de todas as pessoas e encorajou os surrealistas a transferir seus sonhos para a tela. Poetas, assim como os pintores, agarraram-se ao estado de sonho como uma alternativa viável ao clarão ofuscante da realidade objetiva. (...) Dois elementos principais dos sonhos são a justaposição improvável de pessoas e coisas no espaço e a anulação do tempo linear - elementos que suspendem as leis da causalidade – e esses elementos aparecem também no cerne do Surrealismo.

Por causa das incongruências dissonantes do Surrealismo e das justaposições impossíveis, a maioria da sua arte inevitavelmente desafia as crenças do observador sobre tempo e espaço. Um artista que parece ter entendido as falácias do absolutismo Newtoniano foi Giorgio de Chirico. De Chirico fundou, em 1917, o que iria se tornar um movimento artístico Surrealista na Itália conhecido como pittura metafísica. Ele distorcia o espaço, mas usava um método diferente dos artistas que o precederam. De Chirico violava a perspectiva exagerando a profundidade de suas telas, fazendo-as parecer ainda mais profundas do que elas eram. Muitas das suas pinturas têm a aparência de ver alguma coisa através do lado errado de um telescópio. Além de distorcer o espaço, de Chirico desnorteava as convenções usais de tempo inserindo em suas paisagens de sonho figuras enigmáticas que projetavam sombras de cumprimentos paradoxais sob céus de cores inquietantes.

Além do intervalo entre sons, a mudança das sombras devido à rotação da terra é o indicador mais importante de passagem do tempo. Consequentemente, notar mudanças na cor do dia e nas sombras projetadas é o modo mais tranqüilizador que conhecemos de marcar o movimento do tempo. Qualquer pessoa acordando de um sono profundo em um hotel estranho, depois de um vôo em que o fuso horário foi mudado, só precisa olhar para fora da janela para saber aproximadamente a hora do dia. Se o céu é de um azul cerúleo e os objetos no chão projetam sombras mínimas, é seguro dizer que é próximo do meio-dia. Se o céu é rosa, violeta, laranja, amarelo ou vermelho e as sombras são longas, pode-se deduzir que é perto do nascer ou morrer do sol. Se o céu é de um cinza consistente e não há sombras, não há modo de estimar o tempo sem ver um relógio. Nosso conhecimento intuitivo sobre o comprimento das sombras e a cor do céu sempre torna possível para qualquer pessoa estimar a hora com uma precisão razoável.Desde o tempo em que Piero della Francesca descobriu os detalhes de pintar sombras precisas no século XV, seu sistema permaneceu inalterado até a década de 1860. Assim como della Francesca, de Chirico entendeu que as sombras estavam inextricavelmente ligadas a nossa percepção do tempo, mas ele sentiu a necessidade de destruir a antiga convenção e embarcou em uma missão ostensiva de sabotagem.

Em A nostalgia do Infinito (1914) longas sombras sugerem a hora do nascer ou do pôr do sol mas a dura luz do sol banhando a torre Kafkaniana parece mais com a luz resplandecente do meio-dia.A luz mordaz é, de alguma forma, incompatível com as flâmulas oscilando vivamente no que parece ser um vácuo. O céu é de um tom perturbador de verde, como ocorre somente em condições atmosféricas extremamente raras. Através da fusão desse céu com sombras alongadas criadas por uma fonte que banha o resto da tela em uma luz brilhante, o artista leva o observador a questionar todo seu conhecimento intuitivo sobre tempo.De Chirico usou o mesmo conjunto de truques óticos em seu Mistério e melancolia de uma rua (1914), onde a cor do céu, a inclinação das sombras e a natureza da luz de novo confundem o observador com pistas conflitantes sobre o tempo. Em Enigma de uma hora (1912), uma pessoa solitária está de pé em uma praça com uma colunata em arcos no fundo. Nada parece impróprio. Na fachada do prédio existe um relógio que marca 2:55. Uma vez que obviamente é dia, o observador pode assumir que são 2:55 da tarde. Entretanto, a longa sombra projetada pela figura solitária na praça é, sem dúvida, de alguém em pé no nascer ou morrer do sol.

De Chirico não poderia saber naquele tempo que Gustav Kramer, um biólogo, iria demonstrar, em 1949 que pássaros são capazes de cobrir grandes distâncias nos vôos migratórios porque eles usam a cor do céu, a intensidade da luz e o ângulo do sol como instrumentos precisos de navegação para localizar sua posição no tempo e no espaço. Aqui está um artista que investe no coração do que se presumia era um conhecimento instintivo de humanos e pássaros. Nós podemos imputar a de Chirico um radar artístico para avisar o público que outro modo de conceituar o espaço e o tempo estava a caminho?
Embora de Chirico datou todas as suas pinturas, ele propositalmente as datou incorretamente. A data de A nostalgia para o infinito diz 1911, mas em verdade ele completou o trabalho em 1913 ou 1914. Para confundir historiadores da arte ainda mais, há boatos de que ele foi visto aproximando-se furtivamente de suas próprias obras em exibição em museus e, tirando pincéis e tinta do casaco, secretamente alterando a data de suas próprias telas! Críticos se disseram perplexos por esse comportamento estranho, mas esse grafitti temporal de de Chirico – um crime perpetrado em seu próprio trabalho – não pode ser uma declaração anarquista cuja causa é destruir a tirania da idéia ocidental de tempo absoluto? Esses ataques de guerrilha feitos por um artista solitário pode ser interpretado como assalto terrorista sobre a dominação e inflexibilidade desse conceito constante.Depois de 1920 de Chirico começou a reproduzir seu trabalho anterior. Essas cópias, feitas dez a quinze anos depois, carregam as datas dos originais. Seu comportamento foi considerado uma infração tão grande da integridade artística que André Breton, o Grande Inquisidor do Surrealismo, excomungou de Chirico do movimento publicando uma circular condenando o artista Greco-italiano por sua desonestidade em relação ao tempo. É irônico que essa objeção a adulterar o tempo devesse vir do próprio movimento Surrealista, uma vez que pode-se dizer que as tentativas de de Chirico de subverter o tempo linear eram consistentes com o programa geral do Surrealismo.

Embora não fosse cientificamente sofisticado, de Chirico foi o primeiro artista a combinar rotineiramente trens, relógios e réguas em muitos de seus trabalhos. O relógio e a régua são os instrumentos básicos de medição do tempo e do espaço. Einstein desafiou a veracidade desses dois instrumentos comuns na sua teoria da relatividade e demonstrou como não apenas seus valores de medida como também eles próprios mudavam em velocidades especialmente altas. Em todos os seus exemplos, ele usou o trem como o modo hipotético de transporte. Embora não haja nada nos escritos de de Chirico que indique que ele entendeu a revolução de Einstein, a confluência do relógio, regra e trem é muito rica para ser descartada como mera coincidência. Pelo menos, é outro exemplo do zeitgeist do início do século.

Extraido de: SHLAIN, Leonard. Art and Physics: Parallel visions in space, time & light. New York: Morrow, 1993, pp.221-228.

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