segunda-feira, 25 de julho de 2011

Woody Allen em "Take Your Money and Run!", algo além da piada



por Leandro Lança

Introdução

Existem algumas características marcantes que diferenciam o cinema realizado por um “autor cinematográfico”. A constituição progressiva, filme a filme de um universo próprio, composto de temas, técnicas e especificidades que retornam em maior ou menor grau independente do gênero abordado, é sem duvida uma das mais visíveis.

Dono de uma obra que já conta com mais de 40 filmes, Woody Allen soube criar com maestria seu universo, talvez um dos mais autobiográficos da história do cinema, se é que existe autor não biográfico neste sentido. A primeira fase de sua obra conta com filmes que, aos olhos de muitos, são apenas uma avalanche de “piada por piada”. Aos meus olhos, estes filmes contêm mais que risos. Contêm os traços daquilo que Woody permaneceria construindo ao longo das quatro décadas seguintes.

Este artigo pretende abordar alguns aspectos recorrentes na obra de Woody Allen, que, em grande parte encontra-se presente em seu primeiro filme como diretor.


Descobrindo Woody Allen


Lembro-me exatamente do momento em que me tornei um admirador confesso do trabalho de Woody Allen. Sob recomendação de um professor, consegui uma cópia do filme Zelig (1983). Logo no início do filme tive uma súbita certeza de que havia cometido algum equivoco. Certamente se tratava de outro filme (um documentário), ou o que estava assistindo era parte do “Extras”, não o filme em si. Por se tratar de uma cópia sem nenhuma informação adicional, só depois de uma rápida pesquisa na internet pude compreender que o filme se tratava de um pseudo-documentário. A idéia e a forma com que o filme fora montado despertaram em mim vontade de conhecer a obra do diretor, junto à certeza de que Woody Allen fazia um cinema diferente, cinema que, eu em minha completa limitação cinematográfica precisava conhecer.

Depois de assistir filmes como: Noivo neurótico, noiva nervosa (1977), Manhattan (1979), A rosa púrpura do Cairo (1985), Hanna e suas irmãs (1986), Poderosa Afrodite (1995), Dirigindo no escuro (2002), Ponto final (2005), finalmente tive acesso aos filmes que compõe a primeira fase de seu trabalho. Filmes dedicados exclusivamente a comédia como: Um assaltante bem trapalhão (1969), Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar (1972), O dorminhoco (1973) e A última noite de Boris Grushenko (1975).

Esta primeira fase, mesmo sendo essencial para o universo que Woody Allen viria a criar em torno de si, apesar de ter o revelado como cineasta, capaz de fazer o publico rir além de suas apresentações como Stundy Up comedian e a despeito de ter produzido “entretenimento inteligente”, é muitas vezes vista como uma fase que produziu trabalhos “menores”. O próprio Woody Allen confessou algumas vezes que sua intenção com os primeiros filmes era simplesmente fazer rir. Woody diz que sabia de seu poder como comediante, sabia que com a comédia poderia chegar onde quisesse. Em contra partida, quanto aos aspectos técnicos e artísticos desses primeiros filmes o diretor pouco sabia e pouco se importava. Entrevistado por Eric Lax em 1972 Woody fez a seguinte declaração:

“O jeito seguro de fazer o meu tipo de filme é subordinar tudo à risada. Basicamente, ou você faz isso ou não sobrevive, porque ninguém vai se importar se a seqüência está bonita, só se ela funciona.” (LAX, Eric. pg.351)

Só a partir de O Dorminhoco, Woody começaria a se preocupar com a estética de seus filmes, e seu trabalho daria uma verdadeira guinada nesse sentido depois de Noivo neurótico, noiva nervosa, quando têm inicio sua colaboração com o renomado diretor de fotografia Gordon Willis.

“Realmente, a minha maturidade no cinema começou quando me associei a Gordon Willis. Os filmes que fiz antes foram, creio eu, engraçados, exuberantes e o melhor que pude fazer, mas não sabia, realmente, o que estava fazendo.” (BJORKMAN, Stig. Pg,34)

Em meio a viagem pela obra de Woody, minha maior surpresa foi sem dúvida Um assaltante bem trapalhão. A idéia do falso documentário em Zelig havia me deixado a impressão de algo inovador, por se tratar, além de outras coisas, de um filme realizado no início dos anos 80. Ver que Woody Allen já havia utilizado este recurso em 1969 no seu primeiro filme, foi no mínimo curioso. Segundo Eric Lax, o estilo de falso documentário de Um assaltante bem trapalhão abriu caminho para o que passou a ser conhecido como “mockumentaries”, entre eles os filmes de Crhistopher Guest (Esperando o Sr, Guffman, O melhor do show, A Mighty Wind), Isto é Spinal Tap (dirigido por Rob Reiner) e, é claro, Zelig.

Mesmo dizendo em 1972 que tudo estava subordinado a piada em seus primeiros filmes, em outra entrevista concedida a Eric Lax em 1987, Woody Allen observa que sempre teve um senso de estrutura, mesmo quando as pessoas achavam que não. Segundo ele, a maior parte do público não conseguia ver isso por acharem que era só piada-piada-piada. Esse tipo de incompreensão também ocorreu em Zelig. O filme que trata de um sujeito que no intuito de ser aceito e querido desiste de sua própria personalidade, reflete segundo o próprio Allen uma característica do fascismo, onde toda personalidade é destruída para ser parte do grupo. Essa idéia profunda por trás do filme foi durante muito tempo pouco comentada em detrimento da técnica do pseudo-documentário que, muita gente já não se lembrava ter sido usada pelo diretor em sua estréia.


Além da piada


Defendo que, Um assaltante bem trapalhão possui algo mais, além de uma avalanche de gags visuais e verbais, ou a origem dos mockumentaries. No filme acompanhamos a trajetória de Virgil Starkwell. Virgil é um sujeito fracassado que aparenta ter um forte complexo de inferioridade. A forma de resolver suas limitações foi desde cedo se envolver com o crime, (na adolescência seu alvo era ser parte de uma gangue) mas sempre desastrado e incompetente, Virgil acaba sempre na prisão. Quando consegue liberdade condicional, conhece e se apaixona por Louisse (Janet Margolin), empregada de uma lavanderia. Pensa em mudar de vida e casar, mas não consegue abandonar a vida de assaltante.

Muito influenciado pelo estilo anárquico das comédias feitas pelos Irmãos Marx, Woody Allen apresenta nessa comédia aparentemente despretensiosa, um personagem anárquico, um anti-herói, que não consegue se adaptar aos padrões vigentes. Mesmo sendo um desastre, Virgil se torna um criminoso famoso e uma afronta ao modelo de sociedade americano. Para o FBI, que passa a procurá-lo, o assaltante poderia fazer parte de um plano subversivo, pois era ateu e comunista. Após ser preso pela quarta vez, Virgil afirma em entrevista, que o crime é um bom trabalho, pois, entre outras coisas, os horários são flexíveis, conhece-se muitas pessoas e lugares diferentes. Diz que muitos de seus ex-comparsas tornaram-se políticos e ao fim da entrevista e do filme, vemos que esta envolvido em uma nova tentativa de fuga.

Entre outras coisas, parece-me claro que por trás do filme há uma critica sutil ao “American way of life”. Woody Allen desconcerta com muito humor, através de um desviante social, os valores e ideais de sucesso de uma sociedade burguesa: Trabalho, família, amor romântico, religião, estabilidade. Neste sentido o filme é menos uma “divertida apologia ao crime”, do que uma critica aos valores. Virgil, apesar de criminoso, não representa nenhum perigo real a sociedade, trata-se de um sujeito atrapalhado, sem lugar, incapaz de produzir alguma maldade de fato. Já no inicio do filme ouvimos a narração em off apresentar um individuo procurado pela policia em diversos estados em contraste com a foto de Virgil bebê, sereno e indefeso. Em contra partida, os personagens que representam a lei e a ordem são extremamente questionáveis e criticados de maneira cômica, como se representassem maior perigo que Virgil a sociedade. Os pais de Virgil são apresentados como, uma mãe super protetora e equivocada em relação ao filho e o pai como um sujeito severo que desiste de Virgil por não conseguir lhe incutir a idéia de Deus. Em sua primeira prisão Virgil é solto a partir de uma experiência nunca testada em humanos da qual ele aceita ser cobaia. Na terceira prisão um cowboy/delegado responsável pela prisão trata os prisioneiros como animais. Quando resolve arranjar um emprego convencional, Virgil se torna vitima de suborno por parte de uma colega de trabalho. Enfim, em meio a gargalhadas ininterruptas o espectador torce para que o criminoso desastrado se safe em meio à hipocrisia velada dessa sociedade burguesa. Parece significativo o fato do segundo filme de Woody Allen, Bananas (1971) - além de ser subordinado a piada como o anterior - ser uma crítica aos movimentos revolucionários na América do Sul e a postura intervencionista do governo americano. Essa postura crítica, porém sutil e cômica a respeito da política, aproxima-se muito da contribuição de Billy Wilder nestes temas.


O Autor


Allen possui todas as características de um autor, dentro da perspectiva elaborada na década de 60 pelos “Jovens Turcos”, conhecida como “Política dos autores”. Depois de uma experiência frustrante logo no seu inicio no cinema como roteirista do filme “O que é que Há, Gatinha?”, (onde o roteiro foi modificado e mal interpretado) tomou a decisão de nunca mais escrever um filme que não fosse dirigido por ele. Algo parecido com o que ocorreu também a Billy Wilder. Já em sua primeira oportunidade de dirigir, Woody Allen recebe carta branca de uma nova e pequena companhia de cinema, a Palomar Pictures. A única exigência era que o filme fosse realizado com menos de um milhão. Este modelo de produção, com liberdade total e baixo orçamento, é uma tônica no trabalho de Woody até hoje. Este sem dúvida é um dos fatores preponderantes para que ele pudesse criar a seu modo um universo próprio, recheado de temas, referências e combinatórias narrativas que se repetem em todos os seus filmes.

Ao pensar este universo de Woody Allen, vejo que seu primeiro filme possui uma importância salutar. Não do ponto de vista técnico, pois, fotografia, iluminação, elaboração de planos, acabamento e cenários, tudo isso era secundário neste momento para o diretor. O uso da narração, talvez seja o único que eu consiga identificar como recurso técnico que Allen vai se valer mais tarde. Um assaltante bem trapalhão é em sua grande parte narrado em off.

E segundo Eric Lax:

"A narração passará a ser um dos recursos favoritos de Woody. Em Zelig, A era do rádio, Maridos e esposas, entre outros, ela é o fio que liga a história”. (LAX, Eric. 2008, pg.352)

No entanto, do ponto de vista temático tudo ou quase tudo que iria compor seu universo já estava em Um assaltante bem trapalhão. Temas como:

Humor judeu - característico por fazer piadas a cerca de fracassos próprios e situações adversas (aparecem o tempo todo na trajetória de Virgil),

Psicanálise – Referências a Freud e a psicanálise em geral ocorrem em quase todos os filmes de Wood Allen. Aqui, temos a cena onde um psiquiatra é entrevistado junto a um paciente deitado num divan, e as ações de Virgil são interpretadas pela psicanálise. O violão celo que Virgil tocava na adolescência seria um conjunto formado de um símbolo fálico e um corpo que sugeria formas femininas.

Dificuldade com mulheres e sexo – Este tema recorrente em vários filmes de Woody terá sua forma mais bem acabada em Noivo neurótico, noiva nervosa. Neste vemos o começo desta questão ser trabalhada nas cenas hilárias de Virgil tentando desabotoar sem sucesso o vestido ou soutien de Louisse e a câimbra na planta dos pés que ataca Virgil na hora do sexo. Doenças e mal estar corporal, geralmente psicossomático é outro tema super abordado por Woody.

Elementos autobiográficos - Woody Allen é considerado um dos autores de cinema mais autobiográficos, sendo o filme Memórias (1980), o mais evidente. Em Virgil, há algumas coisas de Woody Allen, a começar pela mesma data de nascimento. Como o personagem, Woody nunca se deu bem na escola apesar de seu alto QI e na adolescência se interessou por instrumentos musicais.

Paródias de filmes e gêneros
– Um assaltante bem trapalhão, alem de ser um falso documentário faz paródias a filmes sobre assaltantes famosos como Jesse James, com seus clichês como, grandes assaltos a bancos, fugas espetaculares da prisão, etc. Em filmes bem próximos ela faria novas paródias a filmes italianos em um capitulo de Tudo o que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar , e a Bergman em cenas de A última noite de Boris Grushenko.

Metalinguagem – Este é um artifício que vira e mexe reaparece em filmes de Woody como, A rosa púrpura do Cairo ou Dirigindo no Escuro . Na grande tentativa de assalto a um banco, Virgil propõem que tudo seja a simulação de um filme com diretor e tudo.

Outros temas deste universo que aparecem já em Um assaltante bem trapalhão como referência são: religião, inadequação com máquinas, Jazz, beisebol e cinema europeu.



Conclusão


Nos Estados Unidos, Woody Allen não parece ter uma boa reputação frente ao grande público e a critica, pelo menos não tão boa quanto em outros países. Como ele mesmo gosta de dizer: “Não sou artista o suficiente, nem comercial o suficiente”. No capitulo dedicado a Woody Allen no livro “Grandes Diretores de Cinema” lemos:

“Ninguém é profeta em seu país, e Woody Allen é o perfeito exemplo disso. Tratado nos EUA como um cineasta marginal, ele é, há trinta anos, considerado pelo público francês como um verdadeiro semideus”. (TIRARD, Laurent. 2006. pg.82)

O curioso é que, segundo o próprio Woody Allen, o público americano gosta muito de suas primeiras comédias e nem tanto do restante de sua obra, sendo que, ali já esta contido ao menos do ponto de vista temático, todo o seu universo.

Há uma cena ótima em Um assaltante bem trapalhão quando Virgil e seus comparsas estão planejando o assalto que será um falso filme. Um dos bandidos diz que conhece um ex detento realizador de filmes que seria uma ótima ajuda. O diretor com sotaque alemão diz ter participado de filmes antes do cinema se tornar sonoro, seu nome é Fritz (Fritz Lang?). A certa altura da conversa com Virgil o ex-diretor europeu diz que: “Hollywood não reconhecia seus gênios”. Woody Allen seria um deles mais tarde.




Referências:


LAX, Eric. Conversas com Woody Allen. São Paulo: Cosac Naify, 2008.

BJORKMAN, Stig. Woody Allen por Woody Allen. Rio de Janeiro. Editora Nórdica, 1995.

TIRARD, Laurent. Grandes Diretores de Cinema. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.

Um comentário:

a lana disse...

esse foi o primeiro filme do woody allen a que eu assisti, e acho que até hoje é o meu preferido :)